sexta-feira, 31 de julho de 2020

A Day In The Life

Hoje faz precisamente vinte e cinco anos que acabei o curso (de direito, já agora). Oral de Processo Civil II, cadeira do quarto ano que tinha deixado para trás porque só fiz Processo Civil I, curricularmente do terceiro ano, enquanto frequentava o quarto ano. Só isto já diz qualquer coisa sobre como encarei e fiz o caralhete daquele curso: como achava melhor, que fazer as cadeiras todas direitinhas, ano a ano, nope, não era para mim. Ou antes, aconteceu apenas no primeiro ano, depois ganhei algum juízo, curiosamente quando praticamente o perdi, no segundo ano (resumidamente: ansiedade descontrolada, ataques de pânico, depressão). Decidi o quê e quando, só frequentava as aulas de avaliação contínua quando o assistente valia a pena (nota de rodapé: raras vezes valia a pena), e na maioria das cadeiras estudava sozinha (a percentagem de aulas teóricas que valia a pena era ainda menor), fazia exame escrito com a preocupação de sacar o mínimo para ir a oral (sete valores), e fazia oral (funny fact, não foi uma nem duas em que entrei com nega e saí ou aprovada - nas cadeiras de merda bastava-me issso - ou com uma boa positiva. nunca esquecerei a cara de tacho do meu assistente de Direito Internacional Privado, um cadeirão com justa fama de dificílimo, que me deu dez a avaliação contínua, me viu entrar na oral com oito de exame, passar a cara de puro espanto durante a prova, ao se dar conta que afinal eu percebia daquilo. fiquei com doze. nada mau, considerando).

Foram os piores seis anos da minha vida, e acho que alguém me deve uma indemnização qualquer por, no folclore, estar bem assente a ideia de que a faculdade é a melhor época da nossa vida. Não foi a minha, e penso que é seguro afirmar que muita gente concorda. Vim do liceu uma miúda cheia de gosto pela escola e pela aprendizagem, cheia de ideais de que a universidade seria moldada à imagem daquele fresco em que na ágora Aristotles e Platão debatiam, e os alunos bebiam o seu saber. 'Tá bem abelha. Se me pedissem para retratar a minha visão daquele antro de egos, chusma de salazaritos, amontoado de sebentas velhas, onde se privilegiava não o saber mas o empinanço puro e simples, faria uma coisa muito pós-moderna, usando como meio lixo decomposto e que nem serviria para reutilização ou reciclagem. É que não obstante entrada planando em nuvens diáfanas acabei a chafurdar num aterro imundo e pestilento. True story. 

Persisti e acabei e curso apenas por teimosia. E despeito. E porque prometi ao meu pai. Acabei quase acabada, sem quaisquer perspectivas (o nepotismo e amiguismo é fortíssimo, naquela instituição, e eu não tinha passe para o caminho das pedras), mas lá me amanhei. Arranjaram-me um Patrono (um clínico geral da advocacia, sem pergaminhos, conhecimentos ou fama) que me pôs a trabalhar (de borla, claro) comó caraças, e foi então que comecei a perceber para que servia aquela merdunça toda que me obrigaram a enfiar na cabeça. Toda, não: cerca de metade, que o resto do curso serve (servia?) apenas para encher chouriços e dar emprego a medíocres. Fiz de tudo: bater conservatórias, notários, repartições de finanças; ir para o tribunal com uma listinha de processos para consultar e tomar notas e, já agora, recolher guias de pagamento, ou ir para a fila da distribuição com petições novinhas em folha, dar entrada de peças. Assisti a muitas diligências judiciais (acompanhava o meu patrono a todas as que fazia) e fiz os sessenta julgamentos / diligências que o estágio obrigava a assistir. Bastava uma por dia (vinte a crime, vinte a cível, vinte a trabalho), mas muitas das vezes deixava-me ficar a assistir a mais. Porque estava a aprender, finalmente. A absorver tudo. A construir a minha estrutura de profissional, mais do que de licenciada numa porra qualquer. A amanhar peixe para depois o saber cozinhar bem. A perceber, enfim, para que servia o Direito.

E para que serve, hein? Para os outros não sei, para mim serve para resolver problemas. Simplesmente. E se a resolução que a lei aponta é chocante, bizarra, aberrante, é porque não se está a fazer Direito, está-se a aplicar mal a lei parvamente. Não, dura lex não sed lex. A lex não é um fim em sim mesmo, o Direito é um sistema, e é preciso ter mais que a capacidade de ler e decorar os canhenhos e transferir para o caso. É preciso imaginação (quem diria, hein), sentido crítico, duvidar metódica e constantemente, principalmente perante resultados que ferem a mais elementar noção de justiça e adequação, voltar atrás, estudar mais, pensar e, nunca esquecer, ter sempre presente que somos falíveis, facilmente nos atolamos em atavismos que facilitam a vida mas não aliviam a consciência, mas temos a obrigação de fazer o melhor possível porque a lei - o Direito! - serve a sociedade e o cidadão, e não o contrário.

Vinte e cinco anos passados, valeu a pena? Meh. Tenho um trabalho que me paga as contas, me proporciona uma vida confortável, e até me traz algum prazer (em dias muito alternados). Por outro lado, falhei redondamente. Não segui uma "vocação". Não deixei tudo para trás quando percebi que aquilo não me fazia feliz, e não insisti num sonho que (obviamente!) seria alcansável, para tanto bastaria que eu acreditasse mesmo e me esforçasse o suficiente. Verdade seja dita: a minha vida não se assemelha, minimamente, à vida que um dia sonhei para mim (and there's nothing wrong with that). E pronto, para os vendedores de banha da cobra do self-help, coaching e tretas do género, falhei redonda e retumbantemente. Para uma pessimista como eu - sendo que a minha definição preferida de pessimista é a de um optimista bem informado - acho que até me safei muito razoavelmente. Sou independente e não peso a ninguém. Tenho uma vida melhor que a de muitos. Esforcei e continuo a esforçar-me, mas tenho noção de que também tive muita sorte. O que de melhor tenho na vida não aconteceu apenas em virtude de qualquer esforço ou mérito, mas muito porque calhou. Tal como as coisas más não serviram para me castigar: simplesmente calhou acontecerem. Padeço muito de overthinking, self-doubting e sou uma poster girl do síndrome de impostor; continuo a batalhar com a ansiedade e depressão, não me alimento saudavelmente, fumo, não cuido de mim como devia, canso-me com facilidade, cedo mais do que gostava ao ennui. Ou seja, não tenho nada a ensinar a ninguém sobre a inefável arte de viver. Nem quero, credo. A minha ted talk seria não só uma das mais curtas como deprimentes de sempre, e terminaria com um "isto é mesmo assim, geralmente calha cocó, e um gajo tem é de saber lidar, muita forcinha".  

Mas cá estamos. Lidando (uns dias mais, outros menos) e botando (muita, chata, interminável) faladura. 
Muita forcinha, hein? Hein.

18 comentários:

  1. Tem piada, o teu percurso tem muitos pontos de contacto com o meu. (Última cadeira do curso: Administrativo, do 3º ano, no dia dos anos da minha mãe.) Direito é - sem reconhecimento - dos cursos mais difíceis de tirar. Sinto que enterrei a melhor parte da minha juventude naquilo. Mas havia - e há, certamente - gente que o tira e faz a rota das tascas na mesma.

    (Nada chata, gosto muito de te “ouvir”!)

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    1. Administrativo, o horror, o horror... E cadeirão que faz favor, odiei ;)

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  2. Já eu adorei o curso. Os meus colegas diziam-me que eu era bizarra. Também passei a DIP com 12, não sei como. Eu acabei há 17, FDL no coração (embora concorde com tudo o que dizes sobre a faculdade, professores, gajos das notas, enfim).

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    1. Sâozinha, não adorei nadinha, não guardo boas memórias, e pronto. Ainda bem que tiveste melhor experiência que eu :)

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  3. Ah, e já agora, fiz a minha única oral para terminar o curso, Penal II, um inferno.

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    1. Estive aqui a matar a cabeça a tentar lembrar se fiz oral a penal II ou dispensei (duvido muito, dispensei a pouquíssimas, e por acaso a cadeiras que adorava, como teoria geral, obrigações e, felizmente, filosofia do direito, que apanhei o último ano do Martinez e era ele quem fazia as orais, o animal)

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    2. Tu só gostavas de coisas que eu odiava...Obrigações por causa da assistente, que era uma arrogante do pior e que me disse: "só lhe dou mais de doze se começar a gostar desta cadeira como gosta das outras". Obviamente que nunca tive mais de doze. Eu sou toda de Comercial, e mais tarde de Tributário. Consegui tudo sozinha, porque não tinha cunhas, mas não faço aquilo que queria, que era ser inspectora da PJ. Faço algo que adoro, mas sei que nunca vou conseguir chegar a uma Universidade, porque infelizmente os concursos não analisam o currículo, analisam a cunha.

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    3. Sãozinha, é verdade, eu adorava todas as cadeiras civilísticas e criminais. Estudava com mais gosto e tinha mais facilidade. Económicas, administrativo e fiscal eram o meu pesadelo! Com franqueza, criminal é giro na teoria (para mim), mas não consigo pensar numa única área de trabalho ligada a criminal que seja boa. Nem uma, seja na advocacia, ministério público, magistratura ou serviços públicos relacionados, é um pesadelo (ou é preciso melhor estômago que o meu)

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  4. Muitos parabéns! Não falhaste em nada. Neste momento, podes estar longe do teu ideal, mas o teu trabalho é fruto do teu esforço em superares as tuas dificuldades durante o teu curso. E és uma moça nova, podes sempre tentar umas aventuras :D.

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    1. Filipa, obrigada, e "novas aventuras" é eu conseguir manter a sanidade mental no sitiozinho em que estou agora, caramba, uma pessoa a pensar que com a idade arranja um bocadinho de sossego e eu meti-me cá num manicómio de trabalho ;)

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    2. Isso tb é sinal de q reconhecem o teu talento :).

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    3. Isso de reconhecer a qualidade do meu trabalho, sim senhora, e tenho muito orgulho. Mas o chato é que cada vez mais se aposta numa lógica de "produção" que espelha o pior do sector privado, ou seja, mede-se a produtividade em números e não qualidade. E nisso não sou grande espiga: trabalho devagar mas bem.

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  5. Cá estamos também, lidando.
    Eu, ao contrário, da tua experiência adorei os meus tempos de faculdade. Fui para o curso que queria, 1ª opção, e adorei o curso. Tinha essa mesma sede de saber e aprender e sentia que estava de facto a aprender. Quase que aposto que fomos contemporâneas de Universidade, em faculdades separadas pela Reitoria (acertei?), e fui aluna de alguns grandes nomes da minha área. Saí com uma média razoável (14, que na altura era de facto acima da média, hoje não sei). Depois... depois é que foram elas...sem cunhas nem conhecimentos, e querendo singrar por mérito próprio, perdi conta aos concursos públicos a que concorri porque tinha aquela ideia muito romântica que devia tentar contribuir para um futuro melhor, e para isso deveria estar onde ele era planeado e decidido.
    Bom, olha, a minha vida deu imensas voltas e nunca cheguei de facto a trabalhar na minha área. Nunca entrei em depressão, mas tive momentos muito maus e que duraram bastante tempo. Passei pela fase da raiva, da frustração e acabei na resignação. Desisti de tentar sequer. Depois quando já nem estava nem aí, entrei no mundo da formação e do turismo e em mais numa daquelas reviravoltas, tive a sorte de estar no sitio certo à hora certa e o meu CV chegou a quem procurava alguém com as minhas características.
    E agora sim, tem sido bom. Mau pago e precário, mas gratificante para mim. Entretanto esta bosta do Covid-19 abalou bastante um caminho estava em fase ascendente e voltei a sentir muita raiva e frustração. Ver tudo a ruir à minha frente, quarentena com dois miúdos muito complicados, complexos e exigentes em termos de atenção, deixaram-me mentalmente exausta. Tenho tido momentos muito maus, felizmente com o desconfinamento têm vindo a espaçar. E voltei a ver uma luz ao fundo do túnel em termos profissionais, mas... continuo na corda bamba, precária e mal paga. Nunca pensei chegar à minha idade e andar na base do salário mínimo nacional.
    Não sei se sou um retrato desta geração em termos profissionais e financeiros, mas sei que estou a anos luz do que projectei para mim. Vale-me andar a fazer coisas que gosto, apesar de chegar ao final do mês e não sobrar dinheiro para nada (e sim, às vezes os meus pais ajudam-me).
    E por aqui também se vai lidando, uns dias mais outros dias menos...
    Abracinho apertado :)

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    1. Anna, se estavas na faculdade nas traseiras da minha, o iscte, diz que de facto tinha coisas com interesse para aprender. Se estavas na do outro lado (letras), idem aspas e muita inveja, que eu gostava muito de língua e literatura inglesa, mas não queria ser professora...
      quanto ao resto, olha que feitas as contas eu tive sorte no percurso, ou se calhar acabei o curso numa altura em que as coisas ainda não estavam tão más. Me mate (também de direito) não trabalha na área, e não foi por falta de esforço. Um rol de portas fechadas, o advento do outsorcing, precariedade, enfim, acabou por arranjar um emprego maizoumenos seguro (hoje em dia já nem tanto, ele acha que vem aí um despedimento colectivo e eu não sei). Isto custou-lhe muito, como é natural. Ganha rés-vés, progressão viste-a, detesta o ambiente, o trabalho, tudo. Por comparação até me saiu o euromilhões. O meu irmão está na sua área, mas andou anos numa via sacra que parecia sem fim, agora parece que finalmente lhe reconheceram o valor e está fixe (mas pode virar, embora no público o sitiozinho dele é muito mais vulnerável a mudanças políticas que o meu).
      É lidar, é. Que remédio! Mas sinto muitas vezes que a vida é um grande bordel sem sentido e sem justiça, e lamento imenso tanto talento, esforço e dedicação que se desperdiça.

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  6. Izzinha, estás a reavaliar a vida em luto. Força, a vida não é desperdiçada nunca, e não me pareces ter falhado em nada.

    Eu não podia ter tido um percurso mais diferente no curso. Fui aluna de mérito, 2a melhor media da faculdade muitos anos, muitos premios, sem nunca ter empinado nada (ou muito pouco). Fui head hunted ao sair do curso para um emprego bom em Lisboa, viajei, fui promovida, tirei mestrado quase sem por os pés na faculdade, ofereram-me o doutoramento pago por convite de uma Universidade, e aí apanhei tanto no pelo. Tanto. Por questões de saúde e pessoais que se reflectiram nos estudos, e de repente já não era a maioral da aldeia. Uma lição de humanismo e humildade. E desde aí apanhei tantas, e cada vez que apanho, mais garra tenho para me levantar, sacudir, e seguir em frente e mais alto.

    Tu também vais sair mais forte disto, e ainda serás muito feliz.

    Beijinhos
    AEnima

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    1. AEnima, estava a ser *levemente* irónica nessa parte de ser uma falhada. Posso não ser uma pessoa totalmente realizada, mas também não tenho do que me queixar: apesar de não ter seguido os meus "sonhos" (que me levariam à indigência, aposto), consegui ultrapassar muitas barreiras e dificuldades, aterrar de pé, e ter uma vida que tomara muitos.
      Apanhei uma valente tareia na faculdade, mas a lição de humildade veio depois, já na vida profissional, quando aprendi que sim senhora, eu consigo, mas há muito esforço envolvido.

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  7. Houve uma altura em q me dava com três advogados (nada contra advogados, só contra aqueles cretinos). Duas de Fiscal e um q nc percebi bem, mas q acabou num bom cargo numa coisa de seguros. Não sei se o terem ido p Ramos menos procurados terá ajudado. Todos vieram da Clássica. Mais superficialmente, conheci pessoas de Criminal q teve muito mais dificuldades.

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    1. Filipa, um bom fiscalista consegue ter muita saída, ó se consegue! Tempos houve em que as seguradoras e bancos apostavam fortemente nos departamentos jurídicos, mas hoje em dia é quase tudo serviço prestado por empresas externas

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