segunda-feira, 25 de maio de 2020

A cidade está deserta

Sim senhoras que acabou o confinamento a modos que obrigatório, e eu lá arranjei coragem para ir ao cabeleireiro tratar da piruca que, ela sim, já estava em estado de emergência, a parecer uma esfregona com muito uso.
Para além de tratar da fachada e ganhar confiança na circulação e entrada de serviços, acrescia o teste de esforço ao uso da máscara (quatro horas, no total, non-stop, credo). Já a questão da deslocação confesso-me caguinchas e não consegui ir de metro: a pé, ida e volta, um total de seis mil oitocentos e poucos passos, até nem é aterrador.
De caminho comovi e entristeci, por voltar a ver uma cidade que já não conhecia assim há anos, e nunca num mês de Maio. Eléctricos vazios e sem filas na paragem, ruas só com autóctones (muitos sem máscara, meliantes) e, ainda assim, uma meia dúzia de turistas que não faço ideia de onde vieram, como ou porquê. Ao passar à porta de um café sai um senhor a falar ao telemóvel e que "isto não está mau, está péssimo"; as poucas lojas abertas quase sem freguesia - tirando a zara, tinha fila à porta, pode comprar-se na net, pá - é um bocadinho desolador.
Ali à roda das cinco e meia, seis, era este o panorama na Baixa, num dos semáforos e passadeira mais concorridos todo o ano:





Mas os jacarandás estão lindos.
Isso estão.
E zero encontrões. E é possível caminhar em linha recta.
Ainda não sei se gosto deste oito, se bem que a verdadinha é que não gostava mesmo nada do oitenta.

(e tenho uma grande e sincera pena de quem trabalha ou depende do turismo, que tenho)

quarta-feira, 20 de maio de 2020

Atira-me água benta

Uma pessoa, depois do assédio inusitado e mesmo cruel a que foi sujeita segunda e terça por ocasião de trabalho presencial, decide reconfinar-se e teletrabalhar quarta e quinta, a ver se faz alguma coisa de jeito sem que esteja constantemente a ser interrompida. Uma pessoa levanta-se às horas do costume (muito cedo, é sempre demasiado cedo), deixa cara-metade no trabalho, volta a casa e, devidamente fardada de jeans e sweater, está pronta a produzir, a contribuir para a sociedade, a justificar a remuneração auferida.
Disto ninguém fala, mas há um poderoso inimigo do teletrabalhador. Não é o pijama e a falta de vontade de o trocar (pelamorsasanta, somos adultos, pijama durante o dia só no hospital, we'll always have jean&sweater/t-shirt), não é a proximidade do frigorífico, não é a preguicinha. É o bicho, o monstro do Antes-Porém.
Passo a explicar.
O Antes-Porém é um ser inefável que paira nas nossas existências, mas incorpora com extrema rapidez, precisamente quando mais desatentos e desguardados estamos, ali no exacto momento em que esquecemos a sua ubiquidade, a sua uber maldade, e achamos estar a salvo do ataque.
Exemplifico.
Uma pessoa está ali motivadinha e mortinha por trabalhar, já se orienta na direção do escritório para abrir o computador quando PUMBAS, Antes-Porém vou ali apanhar a roupa, que já deve estar seca. Claro que se apanha a roupa, que nem leva assim tanto tempo, e já pego ali no serviço, mas ainda se está a dobrar a última toalha e já nos cai a ideia que Antes-Porém, aproveito estar aqui no quarto de vestir e arrumo os cachecóis e troco-os pelas écharpes. Realizada esta tarefa, e ainda antes de termos tempo de começar a programar a tarefa laboral que primeiramente iremos executar, eis que nos surge o Antes-Porém já agora também arrumas as roupas interiores de inverno e as substituis pelas t-shirts e tal.
Acho que me fiz entender.
Esta manhã tive umas cinco aparições de Antes-Porém e, julgando eu já estar safa da sua influência nefasta, baixa-me Entretanto (esse outro bicho maléfico e oportunista) já se fez hora de almoço, e pronto; vitória, vitória, era bom que se tivesse acabado a história, mas cheira-me que nem o mais reputado exorcista me livra desta triste desdita. 

terça-feira, 19 de maio de 2020

sexta-feira, 15 de maio de 2020

Inspira

Finalmente a OMS veio dizer publicamente aquilo que o meu pessimismo (esperançoso sempre que se engane) já me sussurrava ao ouvido: a situação passou de "o novo normal" para "o normal". A doença existe e vai ficar, é lidar e aprender a viver nesta realidade. Ainda me lembro muito bem do pânico da SIDA (era adolescente), de não se saber bem o que era, como se transmitia, como se tratava, e tantos anos depois não temos vacinas mas temos tratamentos muitíssimo eficazes, e temos práticas incutidas para evitar contágio e disseminação. Sim, esta transmite-se pelo ar, o que nos limita muito mais; não se conhece tratamentos eficazes nem se sabe bem os efeitos a médio e longo prazo da doença, mesmo nos recuperados. Mas ainda agora isto começou. E é preciso viver, se não da forma como antes o fazíamos, pelo menos é preciso continuar. De boquinha e nariz tapado, mãozinhas constantemente lavadas e higienizadas, mas continuar.

Donde, adiante. Curiosamente, ter a confirmação oficial deste estado de coisas acalmou-me. Não sou exemplo para ninguém, nunca seria, mas estar a viver esta situação a par e passo com um processo de luto pesado tem sido bastante complicado. Mas há mais de uma semana que não tenho crises súbitas de ansiedade, voltei a trabalhar com intensidade (acaba o confinamento e os fregueses não nos largam), e insisti por retomar rotinas. Ir ao supermercado é a pior de todas, já não tenho o luxo de poder dar um pulinho ao Lidl / Continente / Pingo Doce só por meia dúzia de coisas, e confesso que tenho quase de fazer um retiro meditacional antes de me meter ao caminho. Ter de planear com muito rigor tudo o que se come e consome é uma chatice das boas para qualquer desorganizadona adepta do improviso alimentar e domestico como eu, mas cá estamos. Já tenho a empregada a funcionar (minharicasantinha), e o que isso me alivia, caneco, mesmo ateia até ia a Fátima a pé só para comemorar. O cenário é, portanto, pastoso, nubloso, mas possível, exequível. Haja paciência e determinação. 

Cumprindo então o nobre desiderato da normalização da vidinha, prometi-me retomar a emissão normal aqui da chafarica. Haverá ocasionais desabafos e mimimis, que somos todos humanos e toda a gente tem direito a ir-se abaixo, nem que seja pela casca de um alho, mas 'bora lá.

Dou o mote:
Qual foi a cena mais querida, fofinha, ternurenta, alegre, boa onda, comovente, enfim, mêmo, mêmo fixe que vos aconteceu na última semana (ou duas)?

Eu começo:
Ontem, parada num semáforo das Avenidas Novas, vi um casal de patos real à porta de uma pastelaria. Tal e qual como se estivessem à espera de ser atendidos, a um metro e pouco das pessoas, muito sossegados e pacientes. Da pastelaria sai uma senhora de màscara e tigela na mão; acocora-se junto aos patos e começa a dar-lhes pão húmido, que eles comem com evidente satisfação.
Aqueceu-me o coração por uns três quinze dias.