quarta-feira, 3 de outubro de 2018

Como perder uma hora e cinquenta e quatro minutos

Ah, a curiosidade, a tal que matou o gato e um dia ainda me apanha a jeito e me mata de tédio, de arrependimento, de fúria entremeada de profunda tristeza. Ia acontecendo com este filme, maldita a hora em que maturada e ponderadamente, e após ignorarmos sérias premonições de que nada de bom dali adviria, decidimos - ainda por cima! -  unanimemente enfrentar a coisa. 'Tão vamos lá ver - fúnebres palavras - não pode ser assim tãããão mau como a crítica o pintou - oh, não, não pode - e afinal baseia-se na menina Gata Cristina, não é possível errar taaaanto com um dos mais famosos da menina Gata Cristina - ó se é!

Qualquer pessoa atenta ao cartaz de anos passados já adivinhou: trata-se de Um Crime no Expresso do Oriente, que viu - antes fosse ceguinho - a luz em 2017, protagonizado por um Kenneth Branagh de reputação - pelos vistos mal - firmada, e escorada num elenco que não é de deitar fora. Mas afinal é, que o papel de embrulho é de tal sorte ordinário que ficaram todos mascarrados.

Eu nem sei que dizer. Quero crer que nem numa peça infantil seria possível encontrar uma pior caracterização e interpretação de Hercule Poirot. Havendo justiça e sentido de humor no universo, a meio do filme apareceria a menina Gata Cristina, e, dirigindo-se ao protagonista, dir-lhe-ia "você não percebeu nada da minha obra". Ou, ao menos, um senhor de armadura que pespegaria com um frango de borracha na cara de alguém.

Poirot é arrogante? Sim, de uma forma modestamente irritante, e não obscenamente descarada. Poirot é obcecado com a simetria, e até há casos em que, em ambientes estranhos, distraidamente alinha objectos? Sim, mas, lá está, distraidamente; não faz notar a ninguém que o está a fazer, porque é um cavalheiro e é discreto, e seria incapaz de criticar a arrumação - ou falta dela - de outrem. Poirot é exigentíssimo com a comida, guloso, até, e sente-se miserável quando é posto perante uma pobre confecção culinária? Sim, mas não é mal educado com quem o serve, sofre em silêncio, quando muito murmura um nom du nom d'un nom. A queixar-se, fá-lo a alguém íntimo, e nunca ao anfitrião. E não, a sua paixão não são ovos escalfados ou cozidos, mas sim omeletes, das quais se afirma exímio cozinheiro. Poirot usa bengala, sempre? Sim, sempre; mas a sua bengala não faz as vezes de um chicote de Indiana Jones. E Poirot não se sujeita aos elementos voluntariamente, principalmente o frio, e muito menos o frio extremo. Poirot abomina o frio. Poirot teme correntes de ar. Poirot sente-se bem numa casa aquecida e bem calafetada. Poirot é enérgico? Sim, no pensamento, no raciocínio. Poitrot não tem a apetência de Sherlock Holmes por correr, calcorrear, apressar o passo. Nem os sempre impecáveis sapatos de verniz, tortura a que se sujeita voluntariamente, vaidade oblige, o permitiriam.

São apenas alguns apontamentos. Aquilo não é o Poirot, é o Ken a armar ao pingarelho. E o final (spoiler alert), onde dão a dica que, não bastando uma catástrofe, ainda lançarão outra ao mundo? Com aquele coisinho a dizer-lhe que é preciso no Egipto porque houve um crime no Nilo? Senhores, matai-me já, espetai a adaga bem fundo para ser rápido e menos doloroso. A Morte no Nilo ocorre estando o eminente detective lá, pô, ele não é chamado para porra nenhuma. Aliás, em nenhum dos mistérios passados no Egipto, que me recorde, Poirot é chamado após homicídio, Poirot faz parte da trama desde o seu início.

Enfim, que tristeza. Não há floresta capaz de fornecer tanto lenço de papel que enxugue as lágrimas amargas desta fã da menina Gata Cristina. Não há. E havendo, escusavam de a abater para o efeito, bastava não produzirem bostas deste calibre.

20 comentários:

  1. Eu decidi logo que não ia ver. O original é tão bom que depois de ler as críticas e ver o trailer pus de parte para não me enervar.

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    1. Sãozinha, tempo de vida ganho, a sério... não sei porque me meto nestas cenas

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  2. Maluquinha do Poirot3 de outubro de 2018 às 23:33

    O verbo (hercúleo) Poirot, a ter MESMO de descer dos céus literários, só pode fazer-se carne em David Suchet=)
    (recusei-me a ver a abominação, achei que as fadinhas que me morreram só de assistir ao trailer eram carnificina suficiente---e se eu gosto do Ken, da Judi, da Olivia e de Imagine Dragons).

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    1. Ah, David Suchet! Sem dúvida a melhor interpretação de Poirot, é magnífico. E conseguiram filmar toda a obra com ele, tenho essa caixa de DVD :)

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  3. Infelizmente também me deu para ver este belo desperdício de serão no fim de semana (culpo a febre)! Para compensar, também vi esta semana aquele documentário de que falaste aqui sobre os gatos de Istambul! Tão bem filmado, coisa bonita!!!

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    1. Bels, esse documentário é adorável, ainda bem que gostaste :)

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  4. Curiosamente, não gostei nada da adaptação com o Suchet. O tom do livro não é nada deprimente e o episódio parece um concerto de shoegaze :D.

    Do filme, gostei da química entre o Depp e a Pfeiffer. Ainda não vi o outro filme :(.

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    1. Filipa, admito que adoro o Suchet como Poirot. Acho que há um enorme respeito pela personagem e pela obra da AC. Há ainda outro filme, mais antigo, com o Albert Finney e um elenco de luxo: talvez fostes ;)

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  5. Oh mulher mas como é que tu ainda cais nestas esparrelas? Poirot é mesmo o David Suchet e mais ninguém. Os nervos que me dão astas adaptações aos tempos modermos.. Não vejo, recuso-me.

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    1. Patrícia, eu caio em todas, todas, porque lá em casa somos como o gato, e a curiosidade ainda nos acaba por matar. Mas estamos melhores, já há filmes que deixamos a meio ou menos que isso. O Suicide Squad, credo, jasus, não durou 20 minutos. Que coisa má.

      (e depois há aqueles filmes que uma pessoa começa a ver achando que nhé e acaba muito e agradavelmente surpreendida: ainda abro essa rubrica)

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  6. Eu também caí, deixa lá, mas devia ter atirado com um pano encharcado à televisão, logo que encarei com a cena do ovo cozido. Depois a coisa só piorou, desde aquele bigode em cascata, ao ar demente com o saco para o bigode, ao resto. O resto, enfim, lágrimas de sangue.

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    1. Mac, essa cena devia ter servido como sério aviso para parar por ali. Credo, tão ao lado...

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    2. A Mac lembrou-me de boa... o bigode!! Ai os nervos logo ao início... que bigode mal amanhado credo. Dispõe logo mal.

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    3. Sim, o bigode era atroz, às camadas, ou lá o que era. Aquilo penteado de outra forma ficava um handlebar moustache

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  7. Estando eu grávida de 9 meses, à pergunta: qual é o filme que queres ver , sabendo que é o último que ves no cinema por um bom par de anos... quiçá mais?

    ... dormi um bom sono. Um sono caro, está certo. Mas aquela pança e letargia havia de servir para algo. Não fosse ter que fazer xixi a meio do sono, teria perdido metade dos actores. Assim perdi so o papel do johnny depp, que segundo mate, no meio daquela xonice toda, até nem foi mau.

    Irritei muito com o Poirot muito mal interpretado/caracterizado, que vira indiana jones a uma certa altura. Irritei muito com os tropeços da história original para agradar Hollywood... foi tudo mau do principio ao fim. E eu que gosto tanto da pfeifer.

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    1. AEnima, vá lá, ao menos fizeste uma boa soneca, já tiraste algo de positivo do filme :D

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  8. Decidi logo não ver, por: 1) Não ser com o Suchet; 2) Ser o Brannagh; 3) Ser mais uma bizarria do sobrinho da Agatha para fazer dinheiro. (A pior mesmo são agora os livros que andam a ser escritos...)

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    1. Tudo boas razões, desconhecia o envolvimento do sobrinho herdeiro. É certo que teria de ceder os direitos, mas foi mais longe que isso?
      Isso de livros escritos "baseados em" é coisa para me deixar muito aflita dos nervos. Não gosto de fan fiction. Inventem coisas novas, ora.

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  9. Meu querido David Suchet. Não haverá outro Poirot.

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    1. Também o acho o melhor intérprete, sem dúvida. Tal como o Sherlock será sempre o Jeremy Brett <3

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