quarta-feira, 15 de julho de 2015

Don't quit your day job

Confesso sem problemas que sou, amiúde, atacada de acessos violentos de inveja. A minha não se caracteriza por pensamentos de tomara que morras ou odeio-te, não. Como em qualquer boa neurótica, passam pelo apertado beco onde mora o super-ego e transformam-se em auto-crítica ou auto-comiseração, ou seja, manifestam-se de formas tais como porque é que eu não sou assim, ou tanto talento para uns e outros aqui a chafurdar na mediocridade (snif).

Um desses acessos, logo seguido de profunda introspecção e auto-comiseração, deu-me quando visitei o museu Picasso. Ali pode ver-se obras executadas pelo pintor, ao longo da sua vida. E desde já advirto qualquer visitante: perante a tentação de dizer ah, aquilo nem é nada de especial, que atentem na etiqueta com a data da pintura/desenho, façam contas, e concluam com que idade é que o pequeno Pablo pincelou aquela tela. Pois. Pablito já executava perfeitamente diversas técnicas de pintura e desenho numa idade em que eu tinha, como supremo objectivo de vida, chegar ao último nível do jogo do elástico. Depressão.

Sim senhora, coisas que o talento permite, e nem toda a gente o tem, a distribuição não é democrática. Verdade, treinou muito, adquiriu técnica, que o talento só não chega, é a tal coisa de 10% de inspiração e 90% de transpiração. Melhor ainda, teve meios não ao alcance de todos, que uma pessoa até pode ser genial para engenharia aereoespacial, mas se tiver de apascentar cabras para ganhar o pão nunca construirá nem a chapa de um foguete. (o pai era pintor e professor de pintura, e pequenito Pablo assistia a aulas desde criança).

Mas mais que o talento, a técnica, há algo que a muitos nunca tocará. Picasso poderia não ter passado daquilo, da mimetização de técnicas (e que bem as executava), e acabar a pintar retratos de casais endinheirados ao estilo da escola flamenga, bebés rubenescos, ou paisagens impressionistas para alindar casas de jantar da burguesia. E decerto o faria muito bem, mas não: o tipo tinha uma voz, uma visão sua. E caraças, como a tinha. E é isto que distingue os meramente talentosos, bons executantes, dos inesquecíveis: o cunho único. Não vale a pena ter-se talento (e técnica) para depois produzir mais do mesmo. Ok, concedo, dentro dos talentos singulares nem todos fundam ou são precursores de uma "escola", alguns continuam uma certa tendência, mas acrescentam sempre algo de único. Um Monet não é um Degas, nem um nem outro são mais do mesmo, e tanto um como outro são únicos. Picasso foi um bocadinho mais único, pronto.

E é aqui que queria chegar. Há quem seja talentoso e bom executante, mas não tenha voz. Porque há quem seja talentoso e bom executante, mas se mantém numa linha ou escola, não faz nada de novo, usa uma voz que não é sua para se exprimir. E há quem seja talentoso e bom executante e use inúmeras vozes alheias, sem nunca descobrir sequer uma que decida preferir. Ambos se diluem na história; poderão permanecer pendurados lá por casa, mas não farão ninguém acordar no dia seguinte a pensar que gostava de acordar todos os dias a olhar para aquilo.

E este palavrié todo p'ra quê, ó fulana, valhamedeuz que cheguei aqui - a custo - e não percebo onde queres chegar. A lado nenhum, ora. Ocorreu-me. É que eu, uma tola dos lápis - de cor ou grafite -, uma douda dos esborratanços, ainda com bastante menos de duas décadas de vida, tive uma epifania: faltava-me qualquer coisinha, a que chamei talento. E percebi que não era ali que ia ganhar o pão. Depois um dia, passadas as tais duas décadas, alguém me disse que o tal do talento é 90% de transpiração, e percebi que afinal o que me faltava era outra coisa, aquilo que me entrava olhos dentro quando olhava certas coisas. E pronto, talvez melhor assim. Melhor ter tido essa constatação tão cedo, melhor ninguém me ter alimentado uma ilusão narcísica, melhor eu ser dotada, talvez, de um crivo crítico feroz. E ainda bem que visitei o Museu d'Orsay com dezasseis anitos, também. Quando se caminha entre anjos uma pessoa não pode deixar de perceber a sua falta de asas.

19 comentários:

  1. Respostas
    1. Por acaso isto de uma pessoa ter uma grande noção dos seus limites até pode parecer uindo, mas é tão deprê.

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    2. Não digas isso, pensa nos castings dos idolos.

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    3. :D (lá está, fossem muitos como eu, e poupavam-se a tanta figura triste)

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  2. "Quando se caminha entre anjos uma pessoa não pode deixar de perceber a sua falta de asas." Tão verdade.
    Ter noção dos limites pode ser depré mas é também uma prova de maturidade e bom senso. Esta coisa de "tu podes ser o que quiseres e conseguir chegar onde almejas ir" é muito cansativo.
    E sim, acredito na força de vontade, tanto como acredito que às vezes é muito melhor não fazer tanta força.
    Um beijo, Izzie
    Dulce/Porto

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    1. Dulce, há tanta gente por aí a produzir mais do mesmo, e tanta porcaria. Não sei quem os incentiva, ou acha aquilo de valor. Uma vez conheci uma pessoa que se achava um génio não descoberto, e incompreendido. Não era. Nem tinha centelha, nem técnica, sequer. Mas tinha um largo séquito de admiradores ;)

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  3. Mozart herdou os genes do pai compositor e Tiger Woods os do pai golfista? Ou começaram cedo, por causa dos pais? Airton de Senna ter uma pista de kart em casa (!) não terá ajudado ao talento de automobilista?

    (Suspeito muito dessa coisa do talento -- é que suspeito mesmo). E sim, tive inveja do que o Picasso fazia aos 16 anos... mas.

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    1. Xilre, sem dúvida que os genes terão alguma responsabilidade, e o trabalho incessante, o apurar da técnica, o apoio da família, enfim, tanta coisa. Mas quem desenhou aquelas notas na cabeça do Mozart, quem deu a Picasso a ideia de desconstruir tudo e voltar a desenhar? É aí que está o brilho.
      (atenção, Picasso podia ser genial, mas trabalhava como um condenado. quando vi os esboços e quadros estudo que levaram à brilhante conclusão que é As Meninas fiquei pasmada. caramba. não há talento sem trabalho, muito; mas depois há o indefinível)

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  4. Acho que nunca me resolvi com essa questão. Tenho um certo amor-ódio com artistas, amo os verdadeiros, abomino os falsos. Ainda há pouco tempo vi uma entrevista com a Marina Abremovic em que ela dizia que quando alguém lhe dizia que era artista ela perguntava "como é que sabes que és artista?".

    Nunca me senti especialmente talentosa, porque há sempre alguém melhor. Trabalhei muito para melhorar as coisas em que me achei mais fraca e quando as pessoas me falam no meu talento eu acho que é um equívoco. Talvez hajam pessoas talentosas sim, eu já conheci pessoas extremamente criativas que invejei, mas ainda assim acho que só se chega à genialidade com muito trabalho. Às tantas, o único talento de que precisas é nunca esmoreceres com o que estás a fazer, no matter what. É isso que permite continuar a trabalhar.

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  5. "Nunca me senti especialmente talentosa, porque há sempre alguém melhor.": idem aspas.
    Ali entre os 13/14 anos, se me perguntassem, diria que seguiria artes. Fui muito desincentivada (mãezinha crida achava que eu tinha só "jeitinho", que em artes só se fosse para arquitectura - abomino, e os que conheço que seguiram estão mal, por acaso - e que eu era mais uma mulher de letras). Gostava muito de escultura, porque mexe com materiais em 3D, e gosto de idealizar objectos e imaginá-los. Acho que se fosse 10 anos depois, não teria hesitado em seguir design de equipamento (ou teria?). Muitas vezes me questiono se não segui a via mais fácil, a que inquestionavelmente me daria menos trabalho (e por acaso acabou por dar bastante, que tirar um curso de direito a ferros faz-se a duras penas). E é isto. Não sei. Sei que não sou "artista", só. Mas gosto de criar, e sinto falta de criar. Jóias, espaços, objectos. Anyhoo, faço-o como hobby (gavetas cheias de bijuteria, tenho de reconverter/dar destino àquela tralha)

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    1. Conheço algumas pessoas com essa questão. Eu, que segui Artes porque achava que não teria jeito para mais nada, sei que foi a faculdade que me matou a criatividade. Acho que ainda estou a recuperar das cacetadas que levei lá, e já terminei há 8 anos. Basicamente luto por voltar ao meu estado de inocência inicial, em que fazia as coisas por verdadeiro gosto em vez de conceptualidades, objectivos, publicos-alvo. Por isso, acho que seguir Artes é um equívoco. Não é necessário ter tido formação para se ser criativo e fazer trabalho criativo. Mesmo em design gráfico, as pessoas mais criativas que conheci tinham desistido do percurso académico. E se visses muitas das coisas que tenho para fazer durante o dia, "criativo" não é bem o que as define. O que eu sonho mesmo é ter um tempinho para fazer das outras cenas, aquelas que não vêem por obrigação e as quais faço só para agradar a mim mesma.

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    2. Nem de propósito, conheço um designer gráfico que fez o curso fora do meio académico, no Ar.Co. O tipo tem um feitio muito especial, não o consigo imaginar a ser espartilhado por uma escola convencional. Aliás, ele nunca se deu bem na escola, apesar de ser muito inteligente. É engraçado, mas a faculdade mata-nos muita coisa. A mim também matou a inocência e a criatividade, e num curso tão oposto, hein? ;)

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    3. Estive para escrever isto como anónima, mas depois, olha, também ninguém aqui me conhece, por isso, siga a banda.
      Hoje até sinto um pouco de vergonha pelo que vou escrever: durante bastante tempo achei que tinha um talento qualquer à espera de desabrochar. Sempre fui óptima aluna e a minha preguiça natural ajudou-me. Era mais fácil perceber as coisas do que as marrar e tendo isto em mente a coisa fluía e até à faculdade fluíu bastante bem mesmo: notas elevadas, estudo residual. Na faculdade a coisa amochou, mas ainda assim correu bem. Isto fez com que achasse que podia ser o que quisesse ser. Erro crasso, ego amachucadíssimo no pós-faculdade. Não só não tinha qualquer tipo de talento, como ainda por cima as oportunidades não são iguais para todos e eu sempre fui “cunha-free”. E acho que foi aqui que tudo o resto morreu. Concordo com a Fuschia: o único talento que se precisa é o não esmorecer e continuar a ir à luta, e refazer e voltar a tentar, e voltar a cair e tentar novamente… Hoje, completamente despojada de aspirações a ser talentosa, acabo por admirar quem tem essa tenacidade. Já os geniais eu não os invejo tanto. Normalmente o que têm em genialidade falta-lhes em inteligência emocional. As poucas pessoas que conheço e considero serem geniais são todas elas muito complicadas, aquilo não é fácil.

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    4. Anna, quais vergonha? Se queres saber, também passei por uma fase semelhante, a de achar que teria um qualquer talento, e em que o buscava desesperadamente. Também era uma aluna boa, sem dificuldades, bastava-me a atenção nas aulas e pouco estudo para arrancar um 17/18, a preguiça deixava-me ficar por aí. Na faculdade foi o descalabro: era preciso trabalho, e desiludi-me imenso com o curso.
      entretanto a vida nem me correu mal, verdade. Mas fui perdendo ilusões e sonhos, porque um gajo tem de ganhar para comer, e o tempo que sobra não chega para dedicar a actividades criativas, pelo menos com a intensidade que se deseja. É verdade que é preciso empenho, e condições, acima de tudo.

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  6. Apesar de não comentar, sou uma leitora frequente tanto deste blog, como do anterior:) Hoje este texto e o comentário da Anna Blue tocaram-me particularmente, por me relembrarem o que tem sido a minha vida profissional desde que acabei o curso.
    Também fui sempre muito boa aluna e, embora tenha sentido mais dificuldades na faculdade, consegui terminar o curso com uma média elevada que me permitiu ingressar diretamente em doutoramento. Cheia de ego resultante de anos de pessoas e professores a dizerem-me quanto era inteligente, escolhi a área de estudos mais difícil (achava que tudo o resto era para nabos) e decidi que ia entrar na carreira académica, já que ir exercer não estava ao meu nível:)
    Foram cinco anos desastrosos. Eu conseguia fazer as coisas, mas faltava-me o talento e o génio de que fala. Detestei todos os minutos que passei a trabalhar na faculdade. Estava rodeada de pessoas que eram muito melhores do que eu e me recordavam todos os dias a fraude que eu era ali. Não conseguia ter ideias originais para investigação (parecia que me tinha esvaziado por dentro) e limitei-me a ser uma replicadora competente (embora veja agora que também não competente assim). O meu ego sofreu severamente e senti pela primeira vez o que era tentar fazer uma coisa que ultrapassa claramente os nossos limites. Claro que passado o doutoramento tiveram uma agradável conversa comigo a informar-me que o meu lugar não era ali.
    Como tinha de ganhar a vida, procurei um emprego na área e lá fui fazer aquilo que achava que era para os nabos. E estranhamento gostei muito e descobri que sou muito boa naquilo. E tenho tempo para fazer outras coisas, como ler e cozinhar, que não tive nos anos anteriores. E sinto-me feliz e relaxada como não me sentia há muito tempo. E sinto-me valorizada e respeitada.
    Não escondo que ainda tenho um espinho cravado aqui dentro por não ter conseguido cumprir o meu "suposto potencial". Ainda não consigo aproximar-me da faculdade onde trabalhei, restringi ao mínimo relações com antigos colegas (eles não têm culpa, mas não consigo). O meu ego ficou fortemente ferido, mas agora estou a aprender a aceitar que se calhar tomei a melhor decisão.
    Desculpe lá o testamento, Izzie, mas foi o meu momento de catarse:) Se calhar isto parece um exagero de menina mimada, mas enfim, doeu-me.

    Gosto muito do seu blog.
    M

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    1. M, começando pelo fim, obrigada :)
      No resto, bom, não vou estar com paninhos quentes: conheço bem esse sentimento de... desconsolo, frustração, por não conseguir cumprir o meu suposto potencial. Há um cartoon do Calvin que adoro, em que ele festeja ter tirado um C num teste. A Susie, que obviamente tirou um A, estranha. Calvin responde-lhe que descobriu que a vida é muito mais fácil / simples se mantivermos baixas as expectativas dos outros sobre nós.
      Às vezes penso nisto. Sempre fui boa aluna, aprendia sem dificuldade, e se os professores me ralhavam era por ser demasiado preguiçosa para me atirar ao 18 ou 19 (em humanísticas é quase impossível chegar ao 20, vá lá). Levei um grande balde de água fria na faculdade. O estar a estudar algo que não me dizia nada (pelo menos academicamente) e não percebia para que servia, não ajudou. Enfim, foi terrível, passar de uma das melhores a uma que lá se desenrasca. Depois, na vida prática, percebi que se calhar sou melhor do que pensava, tenho é uma forma de pensar e agir diferente dos académicos. E aqui chegamos à tal coisa, que é o preconceito que nos molda, as tais expectativas exageradas. Os meus pais e professores do secundário esperavam grandes coisas de mim. Que mudasse o mundo, fosse uma eminente qualquer, escrevesse cenas, me destacasse, enfim. Mas não sirvo para isso, paciência. Sou uma técnica mui razoavelzinha, e gosto de fazer as coisas bem feitas. Será isto só para nabos? Aqui é que bate o ponto: se calhar quiseram fazer-nos crer que sim, mas ó, um bom mecânico põe-nos o carro fino, um doutorado em engenharia mecânica não. Todos fazemos falta. E haver gente a fazer bem o seu trabalho, com honestidade, nem se fala.
      Anyhoo, eu tenho uma farpa por não ser uma Rodin, Paula Rego ou Lucien Freud, mas que fazer? Admiro-os muito, leio muito, aproveito-me. E isso já não é nada mau ;)
      Não é nada coisa de menina mimada, já agora. Percebo perfeitamente. E na vida não nos vale só o talento, já agora, aquilo que diz a Anna Blue sobre oportunidades (e sorte, acrescente-se) também é vital.

      (aqui pode-se fazer testamentos! eu leio, e há coisas que não se dizem em duas linhas - ou não temos a arte para o fazer :P)

      Beijinho, M.

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    2. Pois, se calhar o problema também está nas expectativas culturais que são criadas sobre a vida profissional das pessoas. Em Portugal, a carreira das carreiras é ser professor universitário. Se pegarmos num professor universitário de Engenharia preguiçoso e incompetente, e num excelente engenheiro, as pessoas atribuem sempre mais crédito ao professor universitário.
      Na série Borgen, que penso que a Izzie também acompanhou, há uma cena em que o Philip se queixa à Birgitte que tem a carreira estagnada, e é obrigado a dar aulas a "miúdos de 20 anos". O que ele mais aspira é, como economista, ser administrador ou consultar de uma grande empresa:) Eu vi aquilo e só pensei "Em Portugal isto era impossível". Ninguém acharia que dar aulas na faculdade era ter a carreira estagnada.

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    3. Ainda não vi o Borgen, está lá no disco, à espera :)
      Essa mística do professor universitário, hum, não sei. Acho que já teve mais glamour; hoje em dia a arte de ensinar anda muito mal cotada (e é pena). Por cá até tenho a ideia que se endeusa muito o "chefe". Seja em que área for: o que manda, o empresário, o CEO, anda aí um culto que me enfada e surpreende.

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    4. Eu não gostei do meu tempo de doutoramento. Gostava da área mas não me dava no meio, sentia-me frustrada. No fim mudei de país (continente até... que culturalmente vale muito) e de área e rejuvenesci!

      Acredita, há tanta gente estúpida em investigação, cheia de títulos e ticked boxes no CV. É difícil lutar contra o preconceito nesta carreira académica. Mas há alturas que parece que todo o esforço, pestanas queimadas e brancas, merecem!

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