quarta-feira, 30 de setembro de 2020

Não se ralem muito com as listas de presentes, vamos todos morrer antes do Natal

 Mamãe requisitou a minha presença numa demanda necessariamente presencial junto de uma operadora de telecomunicações, a fim de entregar papeladas para finalizar cenas que eu iniciei por telefone e tal, tens de vir comigo e arrumamos o assunto (spoiler: eu não tinha de ir). E eu, filha dilecta e obediente, sim senhora, deixa só pesquisar aqui uma loja num sítio amplo e arejado, mas não, tinha de ser na do Colombo, porque já lá tinha ido informar-se das diligências necessárias e, portanto, a menina já a conhecia e ao assunto, tinha de ser lá. Ainda pensei objectar que a menina - chamemos-lhe Gumercinda - deve atender dezenas de pessoas por semana, ora isto em quinze dias decorridos não era garantia de que era só aparecer, acenar um familiar iuhuuu, a menina Gumercinda a abrir os braços olha a Senhora Dona Mamãe de Izzie, então traz aquilo, vamos a isso, e pronto. Mas uma pessoa não objecta assim sem mais. Mamãe apenas aceita uma quota de objecções mínima, costumo esgotar a minha logo nos primeiros dias de cada mês, e entre estar a argumentar com mamãe ou inscrever-me num treino de crossfit, prefiro morrer a empurrar um pneu de tractor.   

Fomos então ao Colombo (onde já não punha estes pés de Cinderela há, seguramente, um ano; para mais e não para menos), duas da tarde, dia da semana. Não sendo religiosa, apenas me restava a esperança de que naquele dia e hora as pessoas andassem entretidas por outros sítios, tipo trabalho, a casa delas, que era onde eu devia estar: em casa, a trabalhar. Não sou religiosa mas mal assomei ao piso de rés-do-chão invoquei todo o Olimpo, ai que ou a) ainda há muita gente de férias; b) o desemprego realmente aumentou; c) a percentagem de pessoas em teletrabalho desviadas por familiares para acompanhar em recadinhos é maior que eu pensava (achava que só a mim calhava o ah, estás a trabalhar em casa?, então tens flexibilidade para.)

Fomos à tal loja, à porta da qual havia um autocolante a dizer "espere aqui", e uma máquina de senhas, sem nenhum funcionário por perto. Como ninguém manda em mim, tirei senha, e parece que era esse o procedimento, porque só se aproximou alguém para saber do número x, e não para ver se alguém estava a esperar ali. Mamãe explica que quer falar com menina Gumercinda, porque menina Gumercinda já a conhece. Menina Gumercinda não a reconhece, e só depois de uma, ainda que breve, explicação diz recordar a situação (nota: estas pessoas não ganham o suficiente, não ganham). Entramos ambas, mas um fulano diz que não podemos estar ali duas; lá vou eu esperar fora da loja. Soltei o adequadíssimo foda-se mental, e ingenuamente pensei que seria rápido, segundo mãezinha querida aquilo era só finalizar. Não há onde sentar. Passam pessoas, muitas pessoas. Porque estão aqui tantas pessoas. Desinfecto as mãos pela 462ª vez. Continuam a passar muitas pessoas. Começo a sentir as costas a reclamar, inicio uma marcha de maluquinhos para a frente e para trás. Entre mais pessoas. Muitas acompanhadas. E com sacos. As costas começam a ensaiar o berro, vou lá dentro dar conta que vou para sítio x para me sentar. Vou. Estupidamente optimista, não levei nem óculos de ver ao perto nem livro. Aborreço-me e panico, a ver cada vez mais pessoas. Nisto senta-se ao meu lado uma sujeita, assentando o rabiosque em cheio no sinal "não sentar". Reclamo. Sicrana ignora-me e volta-me as costas. Desinfecto as mãos, agora pela 567ª vez, e tento respirar pouco. Nisto já lá vai hora e meia, tenho onde estar daí a quarenta e cinco minutos, e a segunda circular anda em obras. Solto um muito a propósito ai o caralho da minha vida mental. Decido-me e volto à loja, passo por inúmeras pessoas, mãe, tenho de ir, não sou precisa, pois não? Não era. Olha a novidade. Vou para o parque, sempre cruzando-me com tantas pessoas, porque estão aqui tantas pessoas, porque há tantas pessoas, entro no carro, desinfecto as mãos pela 612ª vez, o volante também, e vou à minha vida.  

Cheguei a casa com vontade de me enfiar no chuveiro e esfregar-me com palha de aço. Que eu sentia, ó se as sentia, as patinhas minúsculas de dona Covid fazendo treking por mim acima, por mim abaixo. Contive-me, tinha de trabalhar. Trabalhei. Quero confinar quinze dias. Preciso de confinar quinze dias.  Se ligar para a saúde 24 e contar que fui a engano para o colombo, será que me passam justificação?, aposto que não passam. Juro que não sou hipocondríaca, mas a minha agorafobia está em níveis olímpicos.

6 comentários:

  1. Terias evitado essa situação afirmando "Mamãe, esse teu pedido não tem lógica e sei que,se pensares mwlhor, verás isso" 😁.

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    1. Filipa, mamãe tem uma lógica própria, e o seu livro de reclamações é minúsculo. Ele há dias em que desisto, pura e simplesmente. Sou fraca, eu sei :D

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  2. Venho só bater palminhas ao título.

    (há demasiadas pessoas em todo o lado, deveras. covid devia ser sinal de darwin, mas nem por isso eficaz.)

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    1. Red, principalmente há demasiadas pessoas em recintos fechados. Aqui há uma quinzena fui ao continente levantar uma roupa da lavandaria e deixar outra, apanhei um susto de morte: a fila para o hiper chegava ao parque de estacionamento. ainda ponderei dar meia volta, mas a lavandaria é num largo do lado oposto à entrada para o hiper, pelo que ganhei coragem, passei pela fila de pessoas, e pronto. ao menos estava tudo de máscara (e ou a refilar ou com cara de caso por não poderem entrar).
      Também fui a um sábado, estava a pedi-las. Mas já tinha ido noutros, e andava-se à larga. Enfim, nunca mais.

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  3. Já passámos a fase em que o covid era o bicho papão, agora o que está a dar é desvalorizar e defender a economia (como se defender a economia não passasse por garantir que o sns não entope). Nem quero imaginar os CC em modo "compras de Natal".

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    1. Patrícia, ui, as compras de Natal, ainda não me tinha lembrado dessa :/
      Bom, é raro ir a CC, mas este ano só quando tem mesmo de ser e fora de horas de ponta (bendito seja o teletrabalho e a disponibilidade)

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