Vínhamos a pé da escola onde votamos, e senti um cansaço tão entranhado, tão pesado, que sugeri sentar ali no banco. Ele explicava-me o sentido do seu voto e revoltava-se por o por em causa, o que não fiz. Compreendo, mas não concordo; tal como ele compreende e não concorda com o meu. O normal seria irritar-me com a acusação de que o estava a acusar ou repreender, o que não fiz, porra, mas ele insistia que sim; mas a verdade é que já não aguentava mais, já não aguento mais, tanta conversa, tanta teoria (incluindo minhas, sinto-me insuportável), e caiu-me o peso do mundo, falhou-me a respiração e a força muscular, quero só ficar aqui sentada um bocadinho, e não estou a censurar nada, simplesmente não concordo, ainda tenho direito a opinião. Ele percebeu. Ou encaixou. Calou-se.
Ficámos ali em silêncio, eu a ouvir a minha respiração e a suster as lágrimas. Repito-me, mas há momentos assim, em que simplesmente já não aguento mais. Queria desaparecer, deixar de existir, não desexistir. Não é o mesmo que morrer, é apenas não ser. Abrir-se um buraco negro que engula toda a nossa existência e a prova dela. Desexistir físicamente e em memória. Ser engolida por um buraco negro que não me levasse a lado nenhum senão ao esquecimento. Juro: era um descanso, uma bênção simplesmente desexistir. Expurgar a memória: a minha e a de mim, da dor, da desesperança, do que foi e do que ainda está para vir. Melhor ainda: nunca ter sequer existido, poupava-se esta consciência do vazio.
Ele interrompe o silêncio e comenta uma banalidade, e eu conheço-o, quer-me trazer à realidade. Que são diferentes, curiosas, as varandas daquele prédio. Também ele esteve a olhar para o vazio, mas recuou à materialidade; quer-me com ele. Olho para onde aponta e explico que, quando saí da faculdade e fiz o estágio, vinha muitas vezes ali às Finanças, tratar de cenas dos clientes do meu patrono; aquele prédio estava em construção. Muitas vezes magiquei como seria morar ali, sabendo que nunca teria dinheiro para comprar uma daquelas casas. Teria vista para o rio, uma avenida com plátanos, autocarros, padaria, café, tudo ao pé da porta. Era um sonho parvo, naquele tempo absolutamente irrealizável. Da forma como estava a minha vida, nem perspetivas de ganhar para pagar um empréstimo para um T2 em Loures, quanto mais. Quase trinta anos depois, voto na escola ali a vinte metros, moro na casa dos meus sonhos ali a cinquenta metros, e estou sentada num banco de madeira, aliás todo tortinho e desconfortável, a chorar desesperadamente porque nada disto significa nada, nada na minha vida tem significado, substância, imanência; tentei e falhei, não faço falta, não crio uma réstia de carinho, mínima alegria por ter acontecido nesta poeira cósmica no meio do caos; não há nada que me faça sentir realizada, completa; e, a terminar assim, para que serviu todo o esforço, todo o sacrifício, todo o empenho, tanto forçar-me a acreditar que valia a pena e continuar, nunca desistir. Para quê. Sou só eu e ele, as nossas solidões, os nossos sofrimentos, os nossos desamores, a olhar para o vazio, e pelo meio, umas varandas engraçadas.
Olá Izzie,
ResponderEliminarObrigada.
Obrigada por escreveres, pelas gargalhadas, pelas dicas de livros e séries (já descobri pérolas por tua causa!). Obrigada por me fazeres pensar de uma forma diferente. Obrigada também por todas as vezes em que disseste exactamente o que eu sentia (mas nunca conseguiria exprimir daquela maneira tão clara).
Tens uma capacidade incrível de pôr em palavras coisas difíceis, mas com um humor subtil que eu admiro muito. Ler-te faz-me sentir menos sozinha, menos "a pior pessoa do mundo", e mais humana.
Espero sinceramente que recuperes a vontade de querer ser, e que saibas que, deste lado, há leitoras que torcem por ti (mesmo que não comentem muitas vezes).
Um abraço virtual com carinho e admiração.
Olá, Elsa. Obrigada, mesmo.
EliminarFizeste-me chorar, mas é um chorar bom.
Um abraço virtual com muito carinho, e espero continuar a contar contigo desse lado :)
(Já agora, "A pior pessoa do mundo" é um filme bem catita". Fez-me irritar, apontar o dedo e julgar a personagem principal, revirar os olhos, mas, no fim, bom, somos todos a pior pessoa do mundo. Tive uma reação parecida com a Anna Karenina, o Tolstoi que não se ofenda - não pode, já faleceu, toma)