sexta-feira, 15 de maio de 2020

Inspira

Finalmente a OMS veio dizer publicamente aquilo que o meu pessimismo (esperançoso sempre que se engane) já me sussurrava ao ouvido: a situação passou de "o novo normal" para "o normal". A doença existe e vai ficar, é lidar e aprender a viver nesta realidade. Ainda me lembro muito bem do pânico da SIDA (era adolescente), de não se saber bem o que era, como se transmitia, como se tratava, e tantos anos depois não temos vacinas mas temos tratamentos muitíssimo eficazes, e temos práticas incutidas para evitar contágio e disseminação. Sim, esta transmite-se pelo ar, o que nos limita muito mais; não se conhece tratamentos eficazes nem se sabe bem os efeitos a médio e longo prazo da doença, mesmo nos recuperados. Mas ainda agora isto começou. E é preciso viver, se não da forma como antes o fazíamos, pelo menos é preciso continuar. De boquinha e nariz tapado, mãozinhas constantemente lavadas e higienizadas, mas continuar.

Donde, adiante. Curiosamente, ter a confirmação oficial deste estado de coisas acalmou-me. Não sou exemplo para ninguém, nunca seria, mas estar a viver esta situação a par e passo com um processo de luto pesado tem sido bastante complicado. Mas há mais de uma semana que não tenho crises súbitas de ansiedade, voltei a trabalhar com intensidade (acaba o confinamento e os fregueses não nos largam), e insisti por retomar rotinas. Ir ao supermercado é a pior de todas, já não tenho o luxo de poder dar um pulinho ao Lidl / Continente / Pingo Doce só por meia dúzia de coisas, e confesso que tenho quase de fazer um retiro meditacional antes de me meter ao caminho. Ter de planear com muito rigor tudo o que se come e consome é uma chatice das boas para qualquer desorganizadona adepta do improviso alimentar e domestico como eu, mas cá estamos. Já tenho a empregada a funcionar (minharicasantinha), e o que isso me alivia, caneco, mesmo ateia até ia a Fátima a pé só para comemorar. O cenário é, portanto, pastoso, nubloso, mas possível, exequível. Haja paciência e determinação. 

Cumprindo então o nobre desiderato da normalização da vidinha, prometi-me retomar a emissão normal aqui da chafarica. Haverá ocasionais desabafos e mimimis, que somos todos humanos e toda a gente tem direito a ir-se abaixo, nem que seja pela casca de um alho, mas 'bora lá.

Dou o mote:
Qual foi a cena mais querida, fofinha, ternurenta, alegre, boa onda, comovente, enfim, mêmo, mêmo fixe que vos aconteceu na última semana (ou duas)?

Eu começo:
Ontem, parada num semáforo das Avenidas Novas, vi um casal de patos real à porta de uma pastelaria. Tal e qual como se estivessem à espera de ser atendidos, a um metro e pouco das pessoas, muito sossegados e pacientes. Da pastelaria sai uma senhora de màscara e tigela na mão; acocora-se junto aos patos e começa a dar-lhes pão húmido, que eles comem com evidente satisfação.
Aqueceu-me o coração por uns três quinze dias.


6 comentários:

  1. Olha, a mim - que vejo poesia em tudo mas não gosto de poetas -, ilumina-se-me o coração (de uma espécie de fé na Humanidade, mas também de uma certa tristeza, se é que esta pode iluminar alguma coisa) de cada vez que vejo um velhinho, daqueles mesmo muito velhinhos, de máscara na rua. Há todo um “a morte pode esperar” nessa atitude.
    Ontem vi um senhor numa cadeira de rodas mecânica, e também ia de máscara. Era um “I protect you, who protects me?” que achei tocante.
    Todo um misto de sensibilidades nesta coisa da máscara, afinal.

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    1. Linda, eu, que sou menos poética, fico toda contente de os bélhotes já estarem cientes do risco! É que de início andavam todos lampeiros, de boca destapada, enfim.
      Isto é mesmo uma situação de sermos uns para os outros, não vale de nada andar de máscara só meia dúzia, tem mesmo de ser toda a gente. Felizmente já se está a estabelecer essa consciência <3

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  2. Voto na emissão normal, fazes imensa falta :)

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    1. Mac, eu até queria, mas abriu aqui a barraca das bifanas em serviços (quase) normais e não me largam a porta. Hoje faltou pouco para me iniciar na modalidade olímpica de arremesso do agrafador ;)

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  3. a cena mais fofinha é quando o meu filho dorme e eu posso ir trabalhar em sossego :P

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    1. Fuschia, vale! Vale muito! Crianças a dormir o sono dos justos é sempre bom, nesta altura é top! :D

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