segunda-feira, 28 de novembro de 2016

Irritações

Muito enervada com as reacções à morte do Fidel. Muito. Aliás, muito enervada com as reacções de certas pessoas de esquerda, e sua dificuldade em definir e identificar uma ditadura / ditador. Não há liberdade de expressão e/ou imprensa livre? É ditadura. Não interessa as (boas) intenções, não importa se é melhor ou pior que no país x ou y, que fulano ou sicrano: é ditador, é ditadura. A ditadura não se caracteriza apenas pela maior ou mais branda violência policial ou de Estado, pela intensidade da repressão, ou pelo fim com que é instituída. Não basta afirmar que se faz pelo bem do povo para se legitimar um regime; não basta que o regime imposto seja melhor que o anterior para se desculpar o autoritarismo. É mau, ponto, e é mau porque os meios não justificam os fins, e mesmo quanto aos fins, bom, acho que qualquer pessoa informada está conversada.
Fidel era um ditador, Cuba é uma ditadura, e não nos cai a ideologia na lama por o admitir e escrever com todas as letras. Fidel derrubou uma ditadura e instituiu outra, ainda que de sinal diferente. Sim, sou de esquerda, mas quanto a ditadura, soy contra. Fidel foi um importante e carismático líder revolucionário até ao dia 1 de Janeiro de 1959; daí em diante, ao não ter entregado o poder e livre determinação ao povo, instituindo um regime democrático, tornou-se apenas uma caricatura e perversão do que defendeu. E não deixa de ser irónica não a sua morte na black friday, mas no dia em que em Portugal se comemora a derrota de um tentativa igual, de substituir uma ditadura por outra, de sinal oposto. Que isto pode ser uma choldra, que até é em parte, mas é uma choldra livre e onde a esperança, a opinião, o futuro depende de mais que da vontade de poucos impondo-se a muitos. E em Portugal, pelo menos, o hasta la victoria, siempre, ainda se faz, é possível, e sempre, mas sempre, com a livre voz da maioria popular.

9 comentários:

  1. Há uma certa esquerda que se aproxima da direita na sua estupidez.

    Não se pode achar que Putin e Trump são bestas e depois gostar de Fidel.

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    1. Exacto: um ditador é um ditador. E sobre a ditadura em Cuba, cheira-me que nem da missa sabemos a metade.

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  2. "uma choldra livre e onde a esperança, a opinião, o futuro depende de mais que da vontade de poucos impondo-se a muitos." - muitas, imensas, intermináveis dúvidas sobre a realidade deste cenário, ou não fosse a nossa democracia "uma choldra". E se pode até ser fácil definir ditadura, já interpretá-la me não parece tão óbvio. Sempre experimento mixed feelings quando se trata de endemoniar regimes políticos em prole de outros.

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    1. Como dizia Winston Churchill, a democracia é o pior dos sistemas, tirando todos os outros. Eu ainda tenho ilusões, é verdade. Também tenho como seguro que a democracia facilmente cai em demagogia, e que há manipulação dos muitos por poucos. Mas. É sempre possível, numa democracia, dar voz ao povo, e este tem uma arma, a do voto. Numa ditadura, os outros escolhem por nós, bem ou mal, mas impõem, e isso é intolerável. Hitler, Stalin, Mao, Fidel, todos trabalhavam para elevar o seu país, convencidos, de uma forma ou de outra, que o que faziam era o melhor para a comunidade.
      Dito isto, temos um exemplo muito trump-recente do que acontece quando a esquerda, os sociais-democratas e os moderados fazem de conta, não vêem a realidade, e enterram a cabeça na areia. E, sendo democratas, não só temos o dever de aceitar o resultado (embora sem, necessariamente, baixar a cabeça) como de reflectir sobre o que fizémos que nos levasse a ele.

      Cuba é uma ditadura. Era quando lá estive, e continua a ser. Foi o lugar onde fiz o (meu) funeral ao (meu) socialismo utópico.

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    2. O Le Monde - que, ao contrário da imprensa anglo-saxónica, não achou inesperada a vitória do Trump - responsabiliza a esquerda por muito do aconteceu: pelo facto de se ter esquecido do que era ser de esquerda, por ter aberto as pernas à globalização, etc, etc.

      Sempre defendi que a Esquerda não se devia esconder nem imitar a direita no seu conservadorismo.

      É que alguma esquerda anglo-saxónica começa a afirmar que quem não gostou do filme "Moana" é racista.

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    3. A esquerda moderna anda um bocado esquecida, anda. E com tiques de superioridade que são insuportáveis, como se houvesse uma cúpula de iluminados a quem cabe esclarecer e liderar o povinho estúpido. Ora o povinho até pode ser ignorante, miserável, passar mal, mas não é de todo estúpido, e convém ouvir as pessoas, não para ir atrás delas acefalamente, mas para perceber o que anseiam, precisam, e porque se deixam conduzir por estes flautistas de Hamelin.
      (sim, estou a falar da esquerda caviar do Bloco. ainda há pedaço li um a contrapor o Fidel ao Batista! claro que não é comparável, mas isso não faz do Fidel e regime que instituiu algo aceitável, só menos intolerável. E o povo cubano, como qualquer outro, merece melhor.)

      (eu gostei, e muito, do straight outta compton, acho que estou safa :P)

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  3. A propósito: Why Socrates Hated Democracy (https://www.youtube.com/watch?v=fLJBzhcSWTk)
    "Socrates point is that voting in an election is a skill, not a random intuition, and like any skill, needs to be taught systematically to people (...). We have preferred to think of democracy as an ambiguous good, rather than something that is only ever as efective as the education system that surrounds it"."

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    1. Agora não tenho tempo, Fuschia, mas essa final é lapidar. De facto o nível de educação de uma população - toda a população - é essencial. E digo mais, não é só aprender história, filosofia, é preciso também apostar em educação cívica (onde incluo instrução sobre modelos políticos, constituição, o nosso sistema) e científica. Precisamos de um Renascimento.

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  4. esta histeria à volta da morte de líderes carismáticos, quando eles são o rosto de uma ditadura nada encapotada, pode levar a querer desejar mais discernimento à humanidade.

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