quinta-feira, 29 de maio de 2025

Little Miss Sunshine






A um não iniciado, é complicado explicar a depressão, e dificílimo fazê-lo entender. Naturalmente, qualquer pessoa dotada de inteligência média é capaz de apreender o conceito, outra coisa é entender o que se passa, de facto, na cabeça de um deprimido. Não levo a mal; como se diz, ele há coisas que só passando por elas - e há pessoas que não padecem deste defeito de fabrico que é carregar uma nuvem negra na cabeça. 

E outra coisa completamente diversa é aceitar que o deprimido sente verdadeiramente, o que conta. São os negacionistas da depressão e de qualquer perturbação ou doença mental: não há uma prova física, não existe. Fun fact, já estive a tentar convencer um amigo, debalde, que a perturbação de personalidade que diagnosticaram à filha a) é real, existe; b) causa um sofrimento atroz; c) pode e deve ser tratada, e os pais compreenderem e estarem informados, melhor ainda, guiados por um profissional (diferente do da filha) podia contribuir para a melhoria da pessoa em causa. 

Não ficou convencido. Nem quando o encaminhei para pessoa capaz de melhor o esclarecer que, por coincidência extrema,  a) padece da mesma perturbação de personalidade, b) pode confirmar a parte do sofrimento e ainda acrescentar todo um leque de outros sintomas fa-bu-lo-sos que contribuem muito para dar cabo da vida de uma pessoa; c) está a ser tratado, mostrando melhoras muito positivas, ainda que lentas, e caneco como é difícil encontrar alguém que queira e saiba abordar esta cena;  d) se encontrava no local, porque, aqui a suprema coincidência, mesmo do caracinhas, é me mate (só se estraga uma casa).

Continuou céptico. Porque aqueles comportamentos e sintomas se deviam, era o mais certo, a uma má formação de carácter, e não a uma doença ou lá o que é. O diagnóstico, esse sim, é que legitimava e contribuía para perpetuar os comportamentos censuráveis. Voltámos tristes, porque não havia necessidade. Tanta vida estragada. Uma miúda que vimos a andar de baloiço e de chucha, que não tem qualquer relação com o pai, e cuja mãe também não está apta a lidar (sem o saber factualmente, sou capaz de apostar que balança entre a gritaria, acusações, recriminações, e o apaziguamento fazendo toda e qualquer vontade o que, no caso, e aliado ao abandono do pai, é receita para a desgraça).

Chegando aqui para dizer que até entendo, com alguma má vontade mas entendo, o cepticismo daqueles que nasceram com um sorriso pré instalado no coração. São assim, também já passaram por dias mais nublados, mas não entendem que há quem viva permanentemente na bruma. Se se limitam a não entender, não há problema: ignorância não é crime, e cura-se facilmente. Informação não falta, falta às vezes é vontade para a procurar.

Não perdoo é àqueles que, além de não entenderem, lhes é mais fácil acreditar que é uma escolha, a pessoa não faz um esforcinho para sair da fossa, enfim, é feitio (do mau, claro, a pessoa quer é chamar à atenção, é birrenta, egoísta, manipulativa). Aqui já é um caso de burrice, estupidez crónica. São ignorantes mas não sabem que o são; pior, se alguém tenta sequer passar alguma informação, sugerir meios, ui, fincam os calcanhares, insistem na sua convicção.

Houve um tempo em que, rodeada de pessoas assim, e pessoas que, por acaso, tinham um peso, presença, e influência considerável na minha vida, acreditei que elas é que tinham razão. Se tanta gente me garantia que o meu mal estar se devia a uma falha de carácter, a ser demasiado auto-centrada, mimada, malcriada, egoísta, ser do signo caranguejo (juro!), não querer ser melhor, como não acreditar? Se elas, as pessoas, eram tão boas que não só aturavam as minhas faltas (aiaiai!, lá está ela!), até continuavam - embora, para meu bem, para me fazer "ganhar consciência", me darem um abanão, a ver se eu saía "daquilo", muitas vezes se vissem forçadas a avisar que assim não, desisto, um dia já não aguento - a ser minhas amigas, meu marido, minha mãe. Pah, e eu a dar cabo da vida delas. A maçar. A perturbar. Devo ser horrível. Nah. Sou horrível.

Já não acredito nisto. Pelo menos permanentemente. Foi preciso passar por um inferno - que, sem querer, desencadeei -, e ter encontrado um pior que eu. Já não acredito que sou uma pessoa horrível (hoje não, vá), que só sirvo para incomodar, dar trabalho. Pelo menos para uma pessoa e quatro gatinhos não sou essa pessoa horrível. Ou então somos todos horríveis. O que, parecendo que não, sempre conforta um cadinho. 

domingo, 25 de maio de 2025

Uma coisa boa por semana (ii)

 Ainda não fez uma semana, e não é só uma coisa, mas adiante.

O meu Justwatch diz que já estão disponíveis na netflix The Witch e The Northeman, aconselho (muito, muito, muito).

O IMDB já dá um resumo suficiente, e não vou spoilar. Só dizer que se, um dia, tivermos um gatinho (menino, portanto) preto se vai chamar Black Phillip, e se alguém copiar é copião mauzão feião. 

No primeiro, a Anya Taylor-Joy está tão bem, aqueles olhões fazem metade do filme. Sim, vou rever, deixem-me ter uma tardezinha livre. Quanto a The Northman, podem regalar as vistinhas no Skarsgard giro, pena é estar quase constantemente coberto de sangue (isto é um aviso: o filme é violento pa caraças), mas, como o primeiro, está magistralmente filmado e interpretado. 

[E é o Amleth. Atualmente mais conhecido como Hamlet, não sei se isto vale como apropriação cultural, vamos cancelar Shakespeare, atirar sopa de lata ao Globe? Phonix, é tão complicado, o wokismo; podes comer sushi mas ai de ti se és caucasiano e abres um restaurante de sushi, caraças, alguém faça um rough guide do wokismo, já não tenho capacidade, e eu quero tanto, mas tanto, ser uma pessoa melhor :') .]

quinta-feira, 22 de maio de 2025

A pior pessoa do mundo

 Vínhamos a pé da escola onde votamos, e senti um cansaço tão entranhado, tão  pesado, que sugeri sentar ali no banco. Ele explicava-me o sentido do seu voto e revoltava-se por o por em causa, o que não fiz. Compreendo, mas não concordo; tal como ele compreende e não concorda com o meu. O normal seria irritar-me com a acusação de que o estava a acusar ou repreender, o que não fiz, porra, mas ele insistia que sim; mas a verdade é que já não aguentava mais, já não aguento mais, tanta conversa, tanta teoria (incluindo minhas, sinto-me insuportável), e caiu-me o peso do mundo, falhou-me a respiração e a força muscular, quero só ficar aqui sentada um bocadinho, e não estou a censurar nada, simplesmente não concordo, ainda tenho direito a opinião. Ele percebeu. Ou encaixou. Calou-se. 

Ficámos ali em silêncio, eu a ouvir a minha respiração e a suster as lágrimas. Repito-me, mas há momentos assim, em que simplesmente já não aguento mais. Queria desaparecer, deixar de existir, não desexistir. Não é o mesmo que morrer, é apenas não ser. Abrir-se um buraco negro que engula toda a nossa existência e a prova dela. Desexistir físicamente e em memória. Ser engolida por um buraco negro que não me levasse a lado nenhum senão ao esquecimento. Juro: era um descanso, uma bênção simplesmente desexistir. Expurgar a memória: a minha e a de mim, da dor, da desesperança, do que foi e do que ainda está para vir. Melhor ainda: nunca ter sequer existido, poupava-se esta consciência do vazio.

Ele interrompe o silêncio e comenta uma banalidade, e eu conheço-o, quer-me trazer à realidade. Que são diferentes, curiosas, as varandas daquele prédio. Também ele esteve a olhar para o vazio, mas recuou à materialidade; quer-me com ele. Olho para onde aponta e explico que, quando saí da faculdade e fiz o estágio, vinha muitas vezes ali às Finanças, tratar de cenas dos clientes do meu patrono; aquele prédio estava em construção. Muitas vezes magiquei como seria morar ali, sabendo que nunca teria dinheiro para comprar uma daquelas casas. Teria vista para o rio, uma avenida com plátanos, autocarros, padaria, café, tudo ao pé da porta.  Era um sonho parvo, naquele tempo absolutamente irrealizável. Da forma como estava a minha vida, nem perspetivas de ganhar para pagar um empréstimo para um T2 em Loures, quanto mais. Quase trinta anos depois, voto na escola ali a vinte metros, moro na casa dos meus sonhos ali a cinquenta metros, e estou sentada num banco de madeira, aliás todo tortinho e desconfortável, a chorar desesperadamente porque nada disto significa nada, nada na minha vida tem significado, substância, imanência; tentei e falhei, não faço falta, não crio uma réstia de carinho, mínima alegria por ter acontecido nesta poeira cósmica no meio do caos; não há nada que me faça sentir realizada, completa; e, a terminar assim, para que serviu todo o esforço, todo o sacrifício, todo o empenho, tanto forçar-me a acreditar que valia a pena e continuar, nunca desistir. Para quê. Sou só eu e ele, as nossas solidões, os nossos sofrimentos, os nossos desamores, a olhar para o vazio, e pelo meio, umas varandas engraçadas.

 

segunda-feira, 19 de maio de 2025

We don't talk about Bruno


Aqui há quase um ano, ano e picos, deu-me uma comichão do caraças não entender como é que tanta gente que compunha a base de apoio do Trumpas pertencia, precisamente, a uma classe ou grupo social que muito provavelmente seria prejudicado com a sua reeleição - e, na melhor das hipóteses, não tinha ganhado nada com a sua presidência.

Vai daí, decidi lançar-me num deep dive em busca do que pensam essas pessoas, afinal quem melhor para nos explicar os seus quês e porquês. Iniciada a demanda, pus de parte preconceitos do tipo "deploráveis", "red necks", "burros em geral". Queria entender, não confirmar um pretenso julgamento.

E tcharam. Resumidamente, dei cabo do meu algoritmo, ainda hoje o iutubas me recomenda coisas que tenho vergonha de admitir, pronto, vá, vi muita coisa do Da*ly W*re, e foi uma descoberta. Dali saltei para alguns influenciadores com canais próprios, e, entrementes, a título de limpa palato, lá ia vendo uns vídeos de plnatinfluenciadores ou artistinfluenciadores, que é do conteúdo  mais wholesome as fuck que há.

Dizer que aprendi imenso talvez seja exagerado. Principalmente: recolhi muita informação. E percebi as pessoas do outro lado. Para uma esquerdalha moderada cinquentona como eu não é fácil admitir, mas cá vai: não concordo com as soluções propostas (uma ateia pode benzer-se?, é que me benzi muitas vezes); não acompanho a maioria dos diagnósticos feitos, mas tenho de reconhecer, cabeça baixa, braços ao longo das pernas, palmas para dentro: têm razão em muita coisa. Nas queixas, principalmente. A esquerda (e a direita, já agora) moderada abandonou quem dela mais precisa. Tornou-se um bastião de virtude, de bandeiras cada vez maiores, e deixou aqueles conceitos antigos como "classe", "justiça", "mobilidade social", "redistribuição de riqueza", "segurança no emprego", "apoio no infortúnio", "igualdade de oportunidades" (podia estar aqui o dia todo) a ganhar mofo num armário da cave. E depois ainda escarnecem dos que precisam dessa esquerda/centro/direita democrática, tratando-os como burrinhos sem discernimento. Admiram-se? Eu já não.

Em agosto não tinha dúvidas de que o Trumpas ia ganhar, e achei muita graça à kamaleuforia. Graça no sentido fado tuga, ai, que agora estás tan féliiiz, mas logo te desgraças.

Em setembro disse a uma eminência parda do partido que arranjassem maneira de se livrar do PNS*, e depressinha, ou acabavam irrelevantes, como aliás (eu achava que) já eram. Ninguém liga à Izzie, ninguém tufona à Izzie a pruguntar como deve fazer, e depois ó.

Donde, se os 50 na assembleia me chocaram, porque ainda não sou uma velha cínica, infelizmente não me surpreenderam. É hora de se fazer uma grande reflexão, e não só internamente. Avançamos por tempos perigosamente interessantes, daqueles que acontecem quando os centrões democráticos esquecem as suas bases (o povo, 'tá a ver?).

Não vou dizer mais nada, que odeio ter razão nas piores atoardas que venho mandando. Quero enganar-me desta vez, se faz favor. 

E não chamem burros aos eleitores. Façam esse favor. Tentem sim perceber de onde vêm e para onde querem ir. E depois conversem.


*não disse PNS, disse taberneiro, mas de uma taberna boho-chique cheia de conceito, com pratos, copos e talheres  desirmanados, e onde a comida é uma merda.


sexta-feira, 16 de maio de 2025

Fool on the hill

 Visita de rotina à ginéc, o costume, como tenho estado desde a última vez, queixas, não queixas e, para além do que ali me leva, relato que estive de baixa dois meses e picos, nada físico, enfim, foi, pois, assim como que queimei... e do outro lado para surpresa de ninguém, hum?

Uau, U-au. Vou lá duas vezes por ano, a última em outubro, setembro. De duas uma, ou a çenhoura doutora tem uma memória e perspicácia que sim senhora, ou eu já causava uma profunda impressão em profissionais de saúde, mas não do tipo que gostaria.

Ok. 

[a sério que a) não percebi que se notasse tanto; b) porque até eu estava convencidíssima que me tinha ido um niquito abaixo mas nada que não fosse ao sítio; c) por pura justiça narrativa, sublinhar que me mate também notou, e fez uma festa quando me deram baixa, isto se levantar os braços e berrar atéquimfimufabolasfinalmente se pode considerar uma festa, adiante]  

quarta-feira, 14 de maio de 2025

Uma coisa boa por semana (i)

i. Lojas a que dou preferência por culpa de quem lá trabalha

 A vida é demasiado curta para aturar gente aborrecida, quanto mais mal educada. Ganha-se irritação para o dia todo, ou seja, perde-se um dia inteiro a remoer a desfeita. Há gente, situações, cenários que temos mesmo de aturar, que remédio, chama-se ganhar a vida. Mas se preciso de um bem ou serviço, não contem comigo para voltar onde fui mal atendida ou mal recebida. Pelo contrário, se há sítios onde o tratamento é consistentemente bom, mesmo acima da média, ganham uma fã para o resto da vida. Porque as coisas boas são para elogiar (e partilhar, já agora, se alguém sentir essa necessidade, faça o favor ali na caixinha de comentários) cá vai uma listinha, área comércio em geral:

- Nunca fui mal atendida na Papelaria Fernandes, em concreto, nas lojas da Miguel Bombarda e da Rua do Ouro. O atendimento flutua entre o bom+ e excelente; é simpático, cordial, bem disposto; conhecem o stock e sabem aconselhar; e se a dúvida que acabámos de colocar é mesmo muito parva, burra, tola, não dão a mínima nota disso, pelo contrário, explicam ou aconselham como se tratasse duma questão mui pertinente. Gosto muito, sou freguesa fiel. 

- Na Bertrand do CC Amoreiras há um livreiro que é o meu preferido de sempre. Acho que conhece o stock da loja - e do catálogo! - de cor, se lhe pergunto por um livro rara é a vez que recorre ao computador, normalmente a resposta fica entre ah, acho que o vi ali, vou buscar ou sei perfeitamente, está aqui. Falhou uma vez (nem é bem uma falha, o exemplar tinha sido vendido há pouco tempo) mas não faz mal, encomendou-se. Oferece ajuda, estabelece diálogo com os clientes sobre os livros que procuram, faz sugestões (boas, já agora, e não limitadas a livros, filmes também acontece, se vier a propósito); extremamente educado e simpático, nota-se à légua que adora livros. Aposto que não ganha o que merece, facto extensível a todas as pessoas que menciono aqui.

- Na Caroll, também no Amoreiras, há uma empregada que é simplesmente amorosa; acerta no nosso tamanho (amo muito esta qualidade), educada, informa e mostra-se disponível sem ser intrusiva. A Guerra Junqueiro fica-me mais em caminho mas, temos pena, prefiro ir ao Amoreiras.

-  Deixei-me convencer há coisa de um ano que, de facto, vale a pena gastar o que custa um par de Levi's. Depois de comprar um à experiência, já tenho três pares e são os jeans que visto, não tarda os outros têm guia de marcha. Ora na loja do CC Ubbo há um empregado (que acho que é gerente da loja) que também acerta no nosso número, largura e altura, e espanto, no modelo que nos fica melhor. Estava lá com me mate, que só veste Levi's porque padece de um tiquinho de mania, e o tal empregado ouviu-me dizer-lhe, revirando olhos, tá bem, que um dia experimentava, até precisava de umas pretas, mas para quê as mango que tinha vestidas me custaram trinta paus, precisavam era de tingir outra vez. Perguntou-me que tipo de corte gosto, deu-me um par para as mãos, experimentei, e paguei. As da mango pretas (que, de facto, me custaram trinta paus mas tive de tingir umas quatro vezes, com pouco sucesso), já foram. Só para finalizar, quando lá fui dois meses depois comprar o segundo par, não só se lembrava de mim como do modelo e número das calças. A estas pessoas não dão eles o nobel, e está mal.   

- Para terminar um serviço tenebroso, temível, tremendo, que passei a precisar com assustadora frequência: tirar sangue. Há duas coisinhas aqui perto de casa, dois, cinco minutos a pé. Uma série no caminho. Mas nem que chovam pedras, faço os oito quilómetros para cada lado (e pago o parque) para tirar sangue no Hospital da Luz. Ali não preciso de fazer o meu habitual relambório de veias fundas, pouca pressão, perco os sentidos se demorar derivado de tensão baixa e fobia. Népia. Quer dizer, hoje em dia já sei que não preciso. Perguntam só de que braço costumo tirar, põem torniquete e não questionam se o esquerdo seria melhor - canudo, basta ver o meu histórico, a esta altura eu já sei, de certezinha, de que braço conseguem tirar - , vão buscar a borboleta sem necessidade de sugestão nesse sentido, acertam na veia à primeira, e conseguem sacar dois tubos antes de começar a ver tudo a andar à roda. Espero que saibam o que valem, aqueles anjos do vampirismo médico, e lhes paguem em conformidade. Se eu mandasse, coise, mas não mando, e se calhar é por isso que isto tudo está a merda que está.

 

terça-feira, 13 de maio de 2025

Tomorrow never knows

 Ontem fez duas semanas que voltei ao trabalho, depois de uma baixa de 77 dias. Não foi um feliz acaso: na consulta em que (supostamente) renovaria a baixa por mais trinta dias, disse: quero voltar ao trabalho no dia tantos do tal. A médica fez um ar façanhudo, e percebi que não achava bem. O meu psi de muitos anos, que já me conhece de gingeira e já tinha sido avisado do plano na semana anterior, fez só um ar de suspiro. Provavelmente repetiu, desta vez apenas mentalmente, o que já me tinha dito em fins de novembro, princípios de dezembro: pois, a Izzie é assim, muito voluntariosa, mas se precisar, venha cá.

E precisava, mas não queria. E confirma-se, sou muito voluntariosa, esse simpático eufemismo para teimosa como uma mula. 

Às tantas, deveria ter percebido que precisava logo ali em agosto quando, pela primeira vez na vida, não consegui ler um livro do princípio ao fim, quer dizer, consegui, mas ler um policial num mês de férias é um nadinha anómalo, ainda mais quando tantas vezes não conseguia terminar o capítulo e quando lhe voltava a pegar não me lembrava do que ficara para trás. E era um livro de que estava a gostar imenso. Mas não conseguia ler. Nem esse, nem nenhum. Tentei outros, mas nem contei os que deixei a meio. É aborrecido, não estou na melhor fase para ler este, a letra é muito pequenina. E parei de tentar.

Ou se calhar podia ter dado conta quando em setembro, outubro, por ali, levava horas para fazer coisas de trinta minutos, arfava, sentia uma mão invisível a estrangular-me, acordava às quinhentas e não voltava a dormir, bloqueava em frente ao ecrã, na terça não me lembrava do que tinha feito na segunda e precisava de ir rever tudo, deixava frases a meio, irritava-me com os fregueses (mereciam, vá), não me continha (ainda mereciam pior, mas pronto, não se pode). E a pressão. Porque levar três vezes mais tempo a fazer qualquer coisa acumula muita papelada. E o stress. Comprar pasta e elixir paradontax porque acordo com a boca a saber a sangue, tenho de marcar dentista, como se não soubesse que passava a noite - e o dia - a cerrar e ranger dentes. E chorar. De raiva, de cansaço, de frustração. Chorar por causa do trabalho, porque me sinto velha, porque já não sei pensar, porque estou a ficar burra, porque odeio isto tudo.

Foi nesta altura que calhou uma consulta de revisão, e o comentário da voluntariosa. Mas nem assim. Garanti que estava a dar a volta, foi o fideputa do metabolismo que, na verdade, andou mauzito ali entre maio e novembro; que tinha arranjado umas vitaminas que me estavam a (re)animar; que o ginásio me estava a fazer bem.

E deu-se que dias depois fui a uma consulta de medicina do trabalho, obrigada, claro, preciso lá eu dessas merdas, aptíssima, e a meio do meu mega rápido resumo de estado de saúde a médica pergunta, assim à bruta, e há quanto tempo está deprimida? Calou-me. Não soube responder. Quer dizer, eu sempre fui deprimida, doutora, há fases piores, mas passam. A cara de não me enganes, não me faças perder tempo, sabemos as duas, e desabei, abriram as comportas. Fez-me prometer que ia a uma consulta, e escreveu uma nota para a minha médica de família (o psi é particular, consegue passar-me uma baixa mas é preciso um trabalhão). E pronto. Fui ao centro de saúde, marcaram-me uma consulta para essa semana, e lá estive, envergonhadamente, a expôr à minha médica de família a minha fraqueza humana. Baixa, claro, mas atenção (saca da agenda de trabalho) dava-me mais jeito que começasse no dia tal porque antes tenho de deixar aqui umas coisas em ordem. Revirar de olhos mental da médica (também pratico, sei reconhecer), e pronto. Deixei tudo em ordem, avisei quem tinha de avisar, ei, trinta dias, mas daqui a quinze estou fina, não estava, e se me perguntarem o que fiz mês e meio, não sei, porque estava um nevoeiro cerradíssimo.

Depois, numa aberta, decidi que tinha de voltar, ei, e voltei. 

Senti-me tão, tão bem por estar a trabalhar; depois senti-me ultra miserável porque quem é que quero enganar; mas estou a conseguir fazer coisas, ei, ainda percebo disto; e olha preciso de uma choradela na casa de banho. E isto só no primeiro dia. Entretanto houve merdas bur(r)ocráticas que me fizeram chorar outra vez, e uma solidariedade de colegas que me comoveu, e voltei a chorar.

Vai correr bem. Porque sim, porque eu digo que sim, já passei por isto antes, ei, eu sei.

Vai correr bem. Voltei a ler. Comecei com BD, já me atrevo a coisas mais encorpadas e só com letras!, sem bonecos!, e se não ler todos os dias não faz mal, lá chegaremos. Beijinho a mim.

Vai correr bem. Há uma semana que não choro. Ontem foi por um triz, por causa de trabalho (que não estava a conseguir fazer), mas depois fui ao treino, e a seguir terapia, passou. Hoje também esteve quase, que as minhas endorfinas são muita pucaninas, não duram nada, mas não sucedeu.

Vai correr bem. 

[e voltei aqui, também.  nhã-nhã-nhã, que agora o que se usa é o subetáque, mas tenho lá idade, paciência, e tempo para aprender uma rede xoxial nova.

um dia de cada vez. amanhã é dia de postar uma cena boa. um dia uma nhéc, um dia uma boa, além de xoné agora também alterno. vidas.]