terça-feira, 31 de julho de 2018

E eu, que nem gosto (aliás detesto) caviar?

Nada me move contra o dinheiro. Pode não comprar a felicidade, mas ajuda muito, lá diz o povo; e, acrescento eu, paga coisas muito giras. Tenho zero razões para defender a abolição da propriedade privada, e muitas contra a apropriação colectiva de bens, designadamente os de produção; donde, conclui-se, nada contra a iniciativa privada. Não sou comunista pura, portanto, mas sou de esquerda: não confio nas boas intenções de ninguém, acho que a ganância não só existe, e aumenta na mesma proporção do dinheiro que se tem, como não é uma coisa boa, pelo que defendo uma regulação do mercado. O tal mercado não funciona bem sem regulação, e temos mais que provas nesse sentido. Aí entra o Estado, no papel de legislador: tem a obrigação de regular, e este regular deve entender-se num sentido muito amplo, não só de intervenção no mercado financeiro mas na economia em geral e, por maioria de razão, na forma como a sociedade se organiza, promovendo políticas sociais que tenham como fim eliminar assimetrias, e assegurar a todos um ponto de partida o mais paritário possível. Traços largos, é isto em que acredito. Sou portanto de esquerda; democrata, socialista, republicana, whatevs.

Dito isto, nada contra o dinheiro em geral, e o dinheiro de cada um em particular. Desde que exista uma política fiscal que tribute e arrecade para a coisa pública conforme os rendimentos de cada um. Desde que exista uma "caixa comunitária" que invista séria e eficazmente nos serviços básicos que a todos servem e a ninguém devem ser negados - educação, saúde, segurança (incluindo a social), justiça. E esses serviços podem e devem ser de excelência, sustentados por todos, conforme as suas possibilidades; e dirigidos a todos, conforme as suas necessidades, sem avaliações de mérito prévias. Para mim, e no modelo de sociedade que defendo, isto é inegociável e irrenunciável.

Posto isto, nada contra quem enriqueça, desde que por meios lícitos e garantido que seja que pagam o devido tributo à comunidade. Se o Martim Manuel, que nasceu já em ambiente social e financeiramente privilegiado, teve acesso a uma boa educação e cuidados de saúde, decide apenas gastar o que tem, seja no que for, problema dele. Se decide investir seja no que for, e com isso aumentar a sua riqueza, nada contra. Se o Joaquim Manuel, que nasceu em ambiente não privilegiado, mas com um fantástico olho e faro para o negócio, decide endividar-se para arriscar um investimento, nada contra, de novo, seja qual for o resultado. Desde que assumam as suas responsabilidades fiscais, legais e sociais (sim, existem; desde logo pela justa retribuição do trabalho, mas não vamos entrar por aí), tudo bem. Se, Joaquim ou Martim, bolsos cheios, decidem gastar a parte que lhes toca em caviar ou patê de sardinha, quero lá saber. E menos quero saber quais as convicções ideológicas ou políticas de Joaquim e Manuel: estas não são critério nem prévio nem póstumo para aferir da justeza com que ganham ou gastam.

Por tudo o que já longamente expus, a minha reacção ao último "escândalo" político foi de encolher de ombros. Bof, um tipo de esquerda, o malandro, que escolheu investir e até parece que lhe correu bem? O dislate! A provocação! Vejam lá, qualquer dia ainda os apanhamos a beber tinto a mais de dez euros a garrafa, a abastecer a despensa no supercor! Este tipo de indignação, muito semelhante àquela que ocupou diversos media que passaram mais que um milissegundo a discutir a marca de um cachecol de um esquerdalho, cansa-me muito. Não perco tempo com isto. O nível de inteligência de quem suscita e de quem embarca nestes arraiais é o mesmo daqueles colegas de me mate que lhe chamam vermelhusco, comuna, e amiúde lhe perguntam porque, sendo de esquerda, não dá tudo o que ganha aos pobrezinhos. Muito baixinho, mesmo rasteirinho, portanto.

No entanto, sucede que sendo dotada do mínimo de espírito crítico (if I may say so myself), e não tendo receio de mudar de opinião, mudei. E tal aconteceu quando tive conhecimento de um pequeno, minúsculo, pormenor que entretanto veio a público: o investimento em causa era, precisamente, numa área alvo de constantes e sustentadas zurzidelas por parte desse tipo de esquerda. Epá. Adquirir património imobiliário, por concurso, para recuperação, tudo bem. Recorrer à banca para tanto, nada contra, normal. Findos os trabalhos de recuperação colocar à venda, pelo preço de mercado actual, ok. O chato é que remodelar um prédio, situado no centro histórico, de modo a que fique dividido em unidades independentes com áreas entre 15 e 40 m2, indicia imediatamente qual o sector de mercado imobiliário onde se pretende obter rendimento. E se o investidor calha ser uma pessoa que foi eleita para um cargo público com base num programa essencialmente assente no repúdio da gentrificação, da remoção de imóveis do mercado habitacional para o de alojamento local, epá, não. Não pode ser. Não é só, ou sequer essencialmente, uma questão de incoerência, essa palavra que de repente se tornou tão cara. É uma questão de traição ao eleitorado, que o mandatou para os representar. Quem votou no partido em cujas listas concorria revia-se naqueles pontos do programa; logo, se a pessoa eleita, mais, a pessoa que teve o privilégio de ser eleito, a responsabilidade de defender aquele programa, age de acordo com interesses privados em sentido diametralmente oposto, essa pessoa perdeu a legitimidade representativa e deve, por inerência e consequência, renunciar ao mandato público em que foi investido via voto popular. Sem espinhas.

Isto sou eu, claro, que nem sequer votei no partido em causa (mas aquele em que votei, uhu, que se ponha fino, cá por coisas, começo a ficar sem partidos onde botar a cruzinha, ai a minha vida). Por acaso calha partilhar mesa e eleito com quem o fez, e que anda ali muito desmoralizado com esta treta, oscilando entre o ir à próxima reunião ou assembleia ou lá como se chamam as cenas que o pessoal dos partidos faz enunciar o seu descontentamento, ou passar pela rua da Palma e devolver o cartão, tadinho, parece taliqual o pai da Liberdade (anda com uma cara, o coitado).
Não é uma questão de dinheiro, propriedade, mais-valias, riqueza, investimento, capitalismo: o ser de esquerda, pasmem, não faz voto de pobreza nem vive ou tem de viver modestamente. Não é uma questão de coerência, porque quem nunca. É uma questão de integridade, de legitimidade democrática, de respeitar ideologicamente o mandato atribuído por voto popular. E, se formos justos e levarmos esta questão às suas devidas consequências, além do pirete ao vereador, também deveremos estender o dedo do meio à maioria dos seus críticos, incluindo e principalmente um comentadeiro de sua graça Marques "Captain Obvious" Marques, que devia era ter vergonha na cara e ficar caladinho.

14 comentários:

  1. Concordo com tudo, embora não pareça que as críticas se focassem na possível airnbnização e sim no horror de uma pessoa de esquerda ser proprietária.

    Temos de ter cuidado: é que já há cá uns grupinhos financiados pelos Mercer.

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    1. Filipa, sim, e reconheço que a maioria das críticas vinham de gente escandalizada por ele ter bens. O que não me interessa nada, aliás. E quem as faz cai-me na categoria do idiota emplumado. Não há pachorra.

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    2. Confesso que não sei o que me irritou mais, se as críticas ao facto dele ter bens se as defesas absolutamente cegas e incongruentes. Apesar disso eu, que não acompanhei a coisa assim tão detalhadamente, acho que boa parte das críticas que vi foram mesmo à incoerência e não ao negócio propriamente dito.
      O que me desiludiu mais nesta história toda foi a defesa dele de "íamos viver lá em família e ser todos felizes mas depois aconteceu que já não dava e temos que vender" e depois vai-se a ver e dividiram aquela casa em micro-apartamentos que, como dizes, mostra logo o tipo de negócio que era. Micro-apartamentos. Que dor de alma.

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    3. Patrícia, a incoerência não achei muito relevante, até saber dos micro-apartamentos (e são mesmo micro: a minha primeira casa era um T1 bem pequeno, e tinha mais área útil que a maior casa daquele prédio...). eu também sou muito incoerente, e gosto de coisas que são um estalo em muitos dos meus ideais (a feminista que gosta de Led Zeppelin e ZZ top, por exemplo :D).
      A cena do preço a que foi posto à venda também não me chocou, a não ser pelo irrealismo (era muito). Era ganancioso? Sim. Mas um gajo anuncia 5,7 para vender a 5,5; ou vá, 5,2. Depois há a comissão (5% no mínimo, acho que nestes imóveis de luxo há uma taxa crescente), o imposto de mais valias, enfim.

      Quando ouvi a Catarina Martins a defender, defender, fiquei duh. Já o home ficou apoplético, a dizer que se era para isto tinha-se filiado no PCP, que esses não cometem estes erros de palmatória :D

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  2. Nāo sei em que partido sería, mas eu votava em ti.

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    1. Manuela, credo! :D Por acaso ali nos 14, 15 anos, altura em que era muito idealista e mais ingénua, dizia a quem quisesse ouvir que um dia seria deputada (ia mudar o mundo e tal). Depois calhou começar a lidar com gente ligada a juventudes partidárias e partidos e passou-me.

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    2. Reconsidere Izzie. Eu também voto. Nunca vi ninguém conseguir explicar tão bem as minhas opiniões politicas. Aliás da próxima vez que alguém me vier melgar com essa treta do "és de esquerda e gastas dinheiro em X" vou lhe ler este texto.

      AnaC

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    3. Ana C, como diria o outro, I'm too old for this shit :D A verdade é que, como aprendi a duras penas, para se ter actividade e acção política, ainda que se seja movido por motivos cívicos, é preciso trilhar um longo calvário numa estrutura partidária. E isso implica dispor de tempo para investir nessa actividade, muito jogo de cintura, estômago forte, e capacidade de compromisso que vai além da sensatez, ou seja, é preciso pactuar com certos atavismos partidários (para não dizer pior). Infelizmente é esta a cultura política em Portugal. Um cidadão querer ter participação política, quiçá dedicar uns anos da sua vida a um cargo público em prol do bem comum? Nem pensar: é uma carreira, a política, como tudo o que de mau isso implica. Tenho pena, mas é assim.

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  3. Eu concordo com a tua análise, e concordo também muito com o post da Rita Maria acerca. Pegar na questão da ideologia de esquerda e criticar pelo prisma "caviar", bah. Criticar o ter-se bens, baah. Criticar pelo ângulo do investimento imobiliário, baaah.
    Mas para mim a questão da (in)coerência não é assim tão descabida; há as pequenas incoerências de que todos somos protagonistas nas nossas vidas privadas, e depois há as incoerências de monta e em contexto do exercício actual e público de toda uma ideologia... Esta incoerência não acho possível dissociar da questão da "integridade, de legitimidade democrática, de respeitar ideologicamente o mandato atribuído por voto popular". E esta foi a parte que me chocou. Chocar-me-ia viesse de onde viesse.

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    1. Queen, é isso mesmo: há pequenas incoerências que não essenciais, e depois há as outras. Não me choca nada que alguém de esquerda faça investimento imobiliário, mas chocar-me-á sim a forma como o faça. House flipping? Construção? Reabilitação? Tudo bem. Mas apostar num investimento que é tudo o que sempre atacámos, por favor.

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  4. Tive um namorado muito dessas esquerdas modernas que criticava a minha familia sem fim pq o meu pai tinha um mercedes e sei la que mais. No entanto, nunca dava uma esmola a um pobre e no dia que o pai dele morreu e ele recebeu uns cobres, a primeira coisa que fez foi comprar um mercedes. É esta hipocrisia dos comunistas aspirantes a fascistas que me faz desconfiar de tudo quanto vem desta classe. E quando soube o sururu, não estranhei um pouco... tantos casos de hipócritas piores nunca se sabem...

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    1. AEnima, fizeste-me lembrar a história de um ex, que se dizia comunista, mas quando se apanhou a ganhar bem só quis coisas com espavento: carro, casa, férias em resort... Já eu, que era "burguesa", achava esses gastos parvos. Pronto, cada um com a sua, também gosto de alguns luxos e conforto, mas não me mato por isso, e muito menos o faço para "mostrar"

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    2. Falava mesmo da hipocrisia de apregoar um ideal e viver pelo contrário... que é o que me parece esse senhor está a fazer. Ser rico ou burguês não me incomoda. Ricos deviamos ser todos. Incomoda-me apregoar um coisa para os outros mas não para ele... dois copos, duas medidas.

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    3. Bom, uma pessoa de esquerda ser empresária ou ter dinheiro, não acho contraditório, a menos que encha a boca e faça bandeira de ideais anti-propriedade privada...

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