segunda-feira, 21 de março de 2016

Se te queres matar, porque não te queres matar?

Tenho andado caladita, sem grande vontade de alardes, e ainda menos de polémicas. Não me apetece, a modos que. Mas hoje quebro o jejum, e nem é para lançar e me meter em baderna, é só para registar algumas perplexidades, inquietações e dúvidas que se amontoam, ainda por cima a propósito de um assunto sobre o qual sempre tive muitas certezas. Cá vai.

Sou e sempre fui a favor da eutanásia, tal como do aborto. Não à baldex, claro, há que impor e prever limites, dentro do razoável, quanto ao aborto basta dizer que entendo o actual enquadramento legislativo como perfeitamente razoável, que perfeito não há nada. Relativamente à eutanásia, fiquei toda contente quando se avançou com a cena do testamento vital (que eu, como perfeita anormal e procrastinadora, ainda não fiz), e mais ainda quando se teve a coragem de dar o passo em frente e trazer para a linha da frente o tema, sem paninhos quentes. E depois comecei a ver e ler coisas, e comecei a matutar, a congeminar, e a ficar preocupada. A vexata quaestio, como dizem os juriconsultos, é aquele pequenino pormenor da noção, da definição, que daí parte tudo; a saber, definição de limites, o quando, o a quem, o porquê da coisa.

Eutanásia, sem tretas, é terminar uma vida. Matar, pronto. Escusamos de estar com merdiquices. Não é bonito, pois claro que não é bonito. Na minha maneira de ver as coisas, há situações em que se justifica. Há aquela eutanásia mais light, que é a omissão de cuidados quando se entende que estes apenas prolongam uma existência sem esperança e sofrimento sem sentido, deixa-se morrer. E depois há uma mescla de omissão/acção, em que não se prolonga a vida retirando o suporte (artificial) que a mantém, o famoso "desligar a máquina". Estas já se praticam amplamente, e não são consideradas a eutanásia que agora se quer regular. Não ressuscitar é já prática corrente (e que podemos até determinar, o tal testamento vital), desligar a máquina pratica-se em casos de morte cerebral ou em que esta é quase certa, sendo que a "vida" física apenas é mantida com respiração e batimento cardíaco artificial. São situações consideradas de não retorno, ou quase não retorno. Ainda assim, dependem de um acto de vontade e consentimento, do próprio ou terceiros, e parecer médico. Mas não oferecem grandes problemas éticos - acho eu.

Agora matar-matar. Pois. É que cabe aqui muita coisa, seja "apressar" a morte (por exemplo, ir aumentando gradualmente doses de morfina até que a pessoa, que se encontra num estado terminal de grande sofrimento, enfim sucumba, sem que retorne à dor), ou o auxílio ao suicídio. E mesmo homicídio a pedido. E aqui é que a suína torce a caudita. Quando, em que situações, a quem? Toda a gente merece morrer com dignidade? Não nego. Toda a gente merece escolher a hora da sua morte? Não contesto. Mas quando é que alguém pode, legitimamente, pedir a outrem que se encarregue de fazer chegar tal morte? Quando, em que situações, deve e pode o Estado - que é isso que se trata - avançar, tomar nas suas mãos a execução da decisão alheia?

E aqui fico embatucada. Não sei, pá. Não sei como se legisla isto. Em casos particulares não teria grandes dúvidas. Alguém deixa um documento, um "testamento vitalíssimo", em que manifesta expressa vontade que lhe dêem ordem de marcha caso um dia se encontre um vegetal, ou num estado de demência tão profundo que não possua réstia daquilo a que se possa chamar consciência, alguém em estado terminal de uma doença dolorosa, sem possibilidade de cura: sem dúvida. Ressalvado que seja que aquela manifestação de vontade tenha sido expressa enquanto na posse das suas faculdades.

E noutros casos? Tenho uma doença terminal, mas tenho mobilidade, capacidade de por termo à minha vida. Existe porventura algum fundamento moral que me permita pedir a outrem que me despache? A minha existência é muito limitada por determinada doença, vivo em sofrimento e desejo que acabe, mas nada me impede de tomar uma overdose de qualquer coisa: idem. Sofro de depressão profunda crónica, não há tratamento que não tenha tentado e tudo sem efeito, não vejo sentido em continuar vivo: idem. Epá, levando o assunto com alguma ligeireza, porquê encarregar o Estado de praticar o odioso, quando a iniciativa privada pode resolver o assunto?

Vêm todas estas inquietações a propósito de uma reportagem que vimos outro dia, e me incomodou imenso. Um médico (acho que suíço ou holandês) falava do direito à morte, etc e tal, e se, de início estava a 100% com ele quanto a questões como dignidade, fim do sofrimento inútil e por aí, de repente começou-se a falar de casos concretos. Uma senhora com uma profundíssima depressão, após a morte da sua única filha, que não reagiu a qualquer tratamento, e ele deu parecer favorável para eutanásia. E nós "woa!". Pá, não. E sai-se mate, uns relatos de casos mais à frente "este gajo gosta de matar". Dei-lhe a cotovelada da praxe rematada com o habitual "não sejas assim", mas passou-me um frio na espinha. Gostar não seria o verbo que escolheria, mas digamos que se sentia demasiado à-vontade com a cena de. Talvez um tiquinho de complexo de deus. E seguiam-se estatísticas, números de pedidos e deferimentos de eutanásia, números esses em cavalgada ascendente. E as causas. Problemas psiquiátricos a tomar dianteira de doenças terminais, gente muito, muito jovem a pedir para ser encaminhada para a quinta das tabuletas. E começo a pensar que phoda é esta. Desde quando é que se pode permitir que o homicídio a pedido - sim, já não é um mero auxílio ao suicídio - se torne uma regra em vez de uma excepção. Aparece ainda um tipo que já foi a favor da eutanásia, fez parte de uma comissão de ética relacionada, e entretanto deixou de conseguir dormir. Demitiu-se e mudou de ideias. E assim estou eu. Principalmente desde que soube que num desses "países evoluídos" deram parecer favorável e despacharam uma garota de 24 anos, com uma depressão "intratável". Pá, não.

Retorno ao título do post: Pessoa sabia o que dizia. É só isto. E não quero, recuso, rejeito ser cúmplice ideológica de uma cena que pode descambar naquilo que actualmente se pratica no norte da Europa. Mas vivia muito mais descansada se soubesse que um dia, esperemos que não, calhando estar um vegetal a babar pelo canto da boca, ou em dores terríveis e entubadinha até à alma, alguém teria a piedade de me acabar com a miséria, em vez de ficarem ali a assistir uma decadência inexorável e sem sentido. Mas se para garantir a minha dignidade na morte é necessário sancionar a indignidade de cortar vidas que dizem que não querem mais ser vividas, então pronto, assumo o risco. Contrariada, mas assumo. E vou forçar, lá em casa, um pacto Amour.

18 comentários:

  1. Izzie,
    A minha mãe morreu de cancro. Conseguiu resistir e "levantar-se" vezes sem conta para espanto de todos incluindo os medicos que a tratavam - um deles até me confidenciou um dia que ela era quase um case study.
    Dois meses antes de morrer começou a ingerir em permanência doses de morfina. Ingerir não é bem o termo: dee 3 em 3 dias era-lhe colado um penso de morfina e, de manhã e à noite fazia nebulizações também de morfina - éramos nós, a família, que fazíamos este tratamento.
    Durante dois meses, todos os dias. As doses de morfina foram aumentando lentamente. O corpo foi definhando, os órgãos deixaram de funcionar, enfim, vimos uma pessoa "desaparecer" aos poucos.
    Na noite anterior à sua morte, já os rins tinham fechado, o pâncreas, os pulmões precisavam de ajuda, etc. etc. Lembro-me que até a claridade do fim da tarde que entrava pela janela a incomodava, fazía-lhe doer os olhos. Por fim, morreu, durante a noite.
    A esta distância digo-te que teria sido melhor se os médicos lhe tivessem prescrito uma dose grande de forma a ela ter morrido dois meses antes sem passar pelo calvário que passou. Foi uma fase horrível para ela, que sempre esteve lúcida e que sabia e sentia exatamente o que se estava a passar. Dizia: "já estou na morfina, agora é que é mesmo para morrer". Pá, era horrível ouvir isto.
    Mas sera que algum dia lhe passou pela cabeça "acabar com o sofrimento"? Não sei. Nunca o disse.
    Mas eu, chamem-me insensível, pensei muitas vezes, tantas vezes, que seria melhor acabar com aquilo e pronto. Seria eu capaz de o fazer, mesmo se ela mo pedisse? Não. Tenho a certeza que não.
    Mas tenho a certeza que se ela decidisse fazê-lo sózinha eu compreendia.
    Para mim, nisto da eutanásia, o que mexe comigo e me faz não saber para que lado caio eu, é o envolvimento de terceiros. Ajudar uma pessoa a cometer suicídio é homicídio? É um ato de amor? É um ato de egoismo?
    Dulce/Porto

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    1. Oh, Dulce. que situação terrível, lamento muito. Nunca passei pelo sofrimento de ver um familiar ou amigo nessa situação, não faço ideia do que se possa sentir. Mas de uma coisa tenho a certeza: não é justo pensares que foste insensível por teres pensado o que pensaste. É natural, acho eu. Como também é natural que não o conseguisses fazer, caramba, era a tua mãe! Por nas mãos de um familiar ou amigo próximo a decisão (ou pior, executar a decisão)de acabar com a vida de alguém seria atroz... Mas, lá está, ela não pediu. A decisão teria sempre que ser do próprio, ou de um médico (no caso da recta final, em administrar mais ou menos sedativo).
      Se é um acto de amor ou egoísmo, não sei. Pode ser um ou outro, julgo eu. Depende da motivação íntima.
      Já a lei, trata de forma diferente o homicídio, o homicídio a pedido e a ajuda ao suicídio. Distingue não só os actos praticados, mas também a motivação.

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  2. Tenho um post sobre o assunto a marinar, desde o dia dessa reportagem. Não sou a favor, por princípio, no fim, não sei. Depois dessa reportagem e daquele médico fiquei cheia de certezas contra, então quando falou no caso da mulher com uma depressão profunda, após a morte do filho, fiquei arrepiada. Mas não sei, não sei se serei capaz de ser a favor.

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    1. Mac, respeito quem não seja a favor, totalmente. Acho que era preciso ser psicopata para não aceitar essa opinião, ou achar que a minha é mais válida. Afinal estamos a falar de uma vida, mesmo que não nos seja próxima, tem de nos ser cara. Mas. Mas coloco-me sempre a questão: e se a pessoa pedir, quiser? Se o fazemos a um animal, para evitar sofrimento desnecessário, porque não a uma pessoa?

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  3. Gostei muito de ler, é isto que tenho pensado também. Muito muito difícil de legislar parece-me...

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    1. Madalena, dificílimo. Há casos que nos deixam muito na dúvida. como disse à Mac, só um psicopata encara este assunto com leveza.

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  4. Ser a favor da eutanásia não significa não assumir que isto é um tema muito complexo. Contudo, por mais voltas que dê, por mais argumentos que ouça "contra", acabo por bater sempre no mesmo ponto, que é o de não conseguir conceber que alguém tenha mais poder do que o próprio para decidir sobre a sua vida/morte. É muito difícil traçar uma linha e daí só me fazer sentido falar em casos muito excepcionais, precisamente numa perspectiva de se salvaguardar abusos. Não porque considere que só esses casos excepcionais têm "legitimidade" mas porque é preferível pecar por defeito do que por excesso e depois a sociedade, a evolução das coisas, dar-nos-à mais respostas, acredito.

    (Já disse ao meu marido que se um dia eu ficar um vegetal e ele não me levar à suíça eu mato-o) :)

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    1. Mãe Sabichona, estamos no mesmo comprimento de onda, completamente. Acho que tem de se respeitar a vontade do próprio, mas onde se traça a linha? É que no caso da garota deprimida de vinte e tal anos, porquê pedir que a matem, se ela não consegue por termo à sua vida? Caraças, dizer que sim a uma pessoa que pede isto não é ser homicida? Uma coisa é quem não se pode valer, outra é ajudar alguém que tem possibilidade para decidir e agir, e nem sequer teve coragem de o fazer. Porque põe o peso, a angústia de terminar uma vida sobre outrem? Epá, eu não saberia lidar com a culpa de ter morto alguém em situação que considero justificada, quanto mais.

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    2. Quando penso em casos excepcionais, penso imediatamente em quem não tem qualquer autonomia, em quem está preso no próprio corpo para poder decidir sobre ele. No fundo, é também uma projecção minha porque não consigo imaginar querer tomar uma decisão dessas que, por si só, para a querer tomar, já seria certamente avassalador e ainda ser impedida de o fazer por estar dependente de terceiros.
      Ainda assim, fico desconfortável com a ideia de só o permitirmos nessas situações. Faz-me sentido que alguém possa ser ajudado a fazê-lo com dignidade e com o menor sofrimento possível. Mas aí, confesso, a minha empatia quanto a esta causa é muito menor precisamente porque sei que não estão objectivamente impedidos de o fazer por meios próprios.
      Precisamente por não se conseguir traçar uma linha, teríamos de pensar num número muito reduzido de situações e aprender com o que está a correr mal noutros países.
      Os últimos dois meses de vida da minha avó foram, a meu ver, completamente inúteis. Ninguém retirou absolutamente nada daquilo, sobretudo ela. Desejei todos os dias que ela morresse o mais rápido possível. Nem ela nem ninguém merece tal coisa. Eu sei que não é uma questão de merecimento mas caramba, estamos todos ali à volta, a ver o que se está a suceder e com uma moralidade que se impõe. Fogo, merda para a moralidade.

      Quando o meu cão ficou muito doente de forma irreversível, ninguém teve dúvidas que o melhor era abater. Quando a nossa necessidade de ter a consciência tranquila não atrapalha, torna-se muito óbvio o que é melhor a fazer. Chamem-me louca mas acho que era capaz de fazer o mesmo pelas pessoas que mais amo neste mundo. Pelo menos era o que eu quereria que fizessem por mim.

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    3. Faço muito essa comparação, com os bichos. Se temos piedade do seu sofrimento, porque insistimos em atribuir qualidades redentoras (ou outras) ao sofrimento humano?

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    4. Racionalmente também penso assim, mas depois, a consciência, a puta da consciência. Como disse ali em cima, só de ter desejado que a morte viesse rápido (no caso da minha mãe)me deixou a pensar se não estaria a ser egoísta, a não querer ver o que se passava ali, a querer (mesmo!) que aquilo acabasse depressa. Foram dois meses, dasse!
      Dulce / Porto

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    5. Não acho egoísta, a sério. Dois meses a assistir ao sofrimento de alguém a quem queremos bem é também muito doloroso. Nunca passei por isso, e espero nunca passar. Mas a puta da consciência, eu sei... Beijufo grande

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  5. Ainda há outro ponto, que não é o central, mas é importante. Decidir quando se morre também é decidir com quem se morre e enquanto se está em plenas faculdades (que se sabe que irão desaparecer com o evoluir da doença). Entre morrer rodeado de família ou morrer inconsciente durante a noite embalado em morfina, o que é melhor? É porque efectivamente é assim que morrem os doentes terminais.

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    1. Olha, dessa não me tinha lembrado. Boa. De facto talvez seja mais reconfortante para a família e doente poderem estar presentes, mas , lá está, cada caso é um caso.

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    2. Para quem fica, é mais fácil se estiverem presentes no momento da morte. O que actualmente, tendo em conta a forma como os hospitais funcionam, é difícil acontecer.

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    3. Desculpe meter-me, mas, no meu caso, foi melhor a minha mãe ter morrido durante o sono. Penso muito nisso e acho que não conseguia segurar-lhe a mão no momento do último suspiro. Tenho a certeza que não. Mas há casos e casos. Uma das minhas irmãs diz precisamente o contrário
      Para a pessoa que morre, acredito que seja mais reconfortante, mas para quem fica, tenho dúvidas.
      Vou dizer uma coisa horrível, mas absolutamente sincera: para mim foi um alívio saber que a minha mãe naquela noite não acordou. Não foi preciso ver mais olhos mortiços, dificuldades em respirar, mãos geladas, alimentá-la por sonda, enfim, foi um alívio. Para nós e para ela, acredito eu.
      Dulce / Porto

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  6. Não é um tema fácil nem (como tantas vezes parece) um tema de Sim ou Não.
    Sou a favor da Eutanásia desde sempre. Esperar pela morte dos meus não é, infelizmente, coisa nova para mim. Por isso o SIM sempre foi (e atrevo-me a dizer que sempre será) a minha resposta. Mas o problema é que o meu SIM vem agarrado a uma série de condições que se resumem num: "quando se deixa de acreditar num milagre, quando as hipóteses de ter alguma vida são 0%, então é chegada a hora". Só aceito a eutanásia nesse ponto.
    Porque para mim, eutanásia e suicídio são coisas diferentes. E não me lixem, mas alguém com 24 anos e uma mega depressão tem o direito de se suicidar (todos temos) mas não tem o direito de pedir a eutanásia.
    A eutanásia, para mim, significa um último acto de amor, não significa fazer de outro um homicida.
    Como legislar? Onde traçar a linha? Quando é que se entra no caminho irreversível para a morte e a dor é insuportável? Quem tem a capacidade de decidir? Questões para as quais não tenho resposta e que me fazem, cada vez mais, vacilar no SIM absoluto que já tive.

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    1. Idem aspas, Patrícia. O problema, do que me pareceu da reportagem, é que nos países onde inicialmente se autorizou e legislou a eutanásia, também havia limites estritos. Mas entretanto a coisa desenrolou-se, foi-se alargando o âmbito. E é este o problema dos conceitos, mão podem ser demasiado rígidos, ou ninguém os consegue integrar, mas a elasticidade pode desvirtuá-los. Enfim, não é fácil.

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