quarta-feira, 23 de dezembro de 2015

Foi assim que aconteceu

De repente, sem nada que o fizesse prever, levantou-se o cinzento e recupero o meu mojo: quero ler, consigo escrever, as palavras já me saem de jorro e os dedos voam no teclado, uau, uai, cheia de pica e vontadinhas, e calha bem, que há muito para ler e escrever, o xervixo acumula e é preciso dar vazão, mesmo a tempo, ufa, o meu super-poder é a procrastinação e eis que me detém um pedacinho de kriptonite benfazeja. Vai daí, segunda de manhãzinha, ali pelas oito e trinta, já me sento pronta a fazer brotar torrente de palavrinhas, e asinha, que este aqui tem de sair antes de almoço, liga o bicho, clica aqui e ali, e encrava tudo, programa não arranca, word não abre, ai mãezinha, clica no reiniciar e népias, desliga à bruta e religa, e fica ali a remoer, re-remoer, ainda não são nove e já estou a ligar para os santinhos da informática, ninguém atende, vai-se ao café, tenta-se de novo, um nadica antes das nove lá me atendem do cento e quinze laboral, vem o bombeiro de serviço, ouve as queixas, clica e reclica, ui, se calhar é disco, eu uivo, ele tenta de novo a sua magia, nã, tenho de o levar, eu uivo mais, explico a minha urgência, e o bom anjo promete-me um tareco que ainda terá de desencantar algures para eu conseguir trabalhar. Espero, num só pé; troco de pé; decido que preciso de ambos os pés; começo a cirandar por aqui como uma barata, à roda, à roda; aviso quem é preciso avisar do atraso previsível; nos intervalos uivo; chega o santinho com um chaço debaixo do braço e monta-mo aqui; explico que preciso dos meus docs, ou só um, vá; jura que já mos manda; uivo de novo; toca o coiso e atendo logo à primeira, já sei de cor a extensão e é a que me interessa; veja lá se está aí o que lhe interessa, e eu que sim senhor, muito obrigadinha, todos os deuses lhe paguem; já são onze da manhã, tenho uma hora para costurar esta fantasia; força, força companheira Izzie; acabo apenas com meia horita de atraso, envio, vou a correr avisar que enviei, volto, acendo um cigarro, e ligo a perguntar novas do doentinho, responde-me que está em coma induzido e amanhã talvez; uivo e explico que me acontece tudo, que o de casa também me deu o peido mestre e o jeito que me dava na falta do de trabalho, para adiantar umas cenas no fim-de-semana, e arcanjo dos arcanjos diz para o trazer que também lhe dá uma olhadela, agradeço muito e rasam-me de lágrimas os olhinhos.
Entretantos, hoje é quarta, o animal continua de cama, e lá a ver se não precisa de um transplante de disco que não existe em stock, continuo a contar só com o ferro-velho que rosna enquanto funciona, acata ordens com a velocidade de um caracol asmático em subida acentuada, conclusão, não há aparelho que possa por debaixo do braço e levar comigo, o que me parece mal, afinal estamos em época onde mobilidade, versatilidade e multifuncionalidade são palavras-chave, e olhem, faz-se o que se pode, ao diabo a motivação, a vontade - e necessidade - de produzir, logo às seis ala, de mãos vazias, e segunda que vem cá estamos outra vez.


[lembrei-me entretanto que, por extrema curiosidade, o equipamento informático já está, por decurso inexorável do tempo, a chegar aos limites; não tarda nada - tipo, uns mesitos - está mesmo obsoleto e imprestável para as necessidades, e logo agora, nestes tempos em que a palavra despesa é palavrão. também por curiosidade, todo o actual equipamento foi renovado em tempos de governo pê-ésse - esses despesistas! - usou-se e gastou-se entretanto, e em tempos de governo pê-ésse-dê começou a atingir o fim da sua vida útil. curiosamente - ou não - vai ser durante este novel governo pê-ésse que se vai verificar a absoluta necessidade de renovar o equipamento. mais tarde ou mais cedo lá teria de acontecer. claro que, fosse o pê-ésse-dê governo, e não aconteceria, que essa boa gente, frugal e poupadinha, seria completamente indiferente ao facto de se conseguir trabalhar ou não com o que há, e ainda nos diriam para ter paciência e dar à manivela. recordo, sem saudade, aqueles já longevos tempos de uma fotocopiadora que cuspia pó de toner e triturava folhas a-quatro, e uns computadores que a gente chegava, ligava, ia à bica, trocava larachas com quem encontrasse e, quinze minutos depois, com sorte, já estavam a funcionar. às vezes não, e era preciso reiniciar. giro-giro. tantas as vezes que às dez, onze, ainda não se conseguia. e depois não sei quê que não se produz. pois não. não se faz limonada boa a espremer os frutos à mão.]

4 comentários:

  1. Essa noção de poupança não é exclusivo do sector público. Na minha antiga chafarica, quando ia para fora davam-me um portátil e o meu pc de secretária era devolvido à informática para estar disponível para outros. Quando voltava tinha de entregar o portátil e requerer novamente um pc tradicional, que depois tinha de ser formatado e instalar o que precisava. E assim sucessivamente, sendo que por ano isto acontecia n vezes. E perguntas tu porque raio não de davam um portátil de vez? pois, economia de recursos diziam eles, uma vez que não havia portáteis suficientes. E estar às vésperas de embarcar e sem portátil para levar? Também aconteceu. E precisar de imprimir documentos e apresentações para clientes e não me darem autorização para imprimir a cores? Também aconteceu. Depois era ir fazendo as omeletes com o que tinha mais à mão. Foi uma emoção trabalhar naquela empresa até ao fim...

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    1. Ah, gestão à portuguesa! Aqui, jesusejalouvado, chegaram à conclusão que ficava ao mesmo custo, ou mesmo menor, "dar" um portátil. E é verdade. É pena é se o gajo avaria e ficamos a seco. Porque ando de transportes e não gosto de andar carregada, normalmente levo as coisinhas numa pen, quando preciso de trabalhar em casa, mas o meu, puf.
      Ah, e por enquanto ainda há pessoal de informática da casa. Qualquer dia, hum, nem isso. O pessoal de limpeza é todo de uma empresa externa. Ou seja, para não se pagar salários a assistentes operacionais, contrata-se uma empresa que emprega (sabe-se lá em que condições) imigrantes (são todas negras, e algumas falam português mal, desconfio sejam guineenses) a uns dois euritos à hora. É o ciclo do miserabilismo e da miséria.

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  2. (Epá, eu tenho uma sorte dos diabos. Não tenho uma queixa nesse aspecto. No trabalho acho que até prefiro o pessoal externo que o caseiro - por uma questão de princípio não acredito no outsourcing, acho uma estupidez, mas neste caso acho que eles são fantásticos. Na verdade posso trabalhar de qualquer canto do mundo, qualquer internet - até aquela de borla - dá-me acesso a tudo, a empresa deixa-me trabalhar de casa alguns dias por mês - assim me dê jeito, eles até agradecem que não lhes gaste luz por um dia ou dois)

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    1. Há dias em que posso trabalhar em casa, mas implica sempre alguma logística, i.e., carregar tralha. Por isso, muitas vezes acabo por desistir, só a canseira!

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