sexta-feira, 22 de outubro de 2021

Uma série, um filme, um livro

Imaginem aquele tipo de casal que chega a casa, sexta à noite, abanca em frente à televisão, e um se lembra que nesse dia ficou disponível na netflix o Seinfeld. "Ei, e se víssemos só o primeiro, só para matar saudades?". Nove episódios depois, o canal pergunta, gentilmente, se ainda ali estamos, e vivos. Pois, parece que há pessoas assim, not that there's anything wrong with that.


Bom, mau grado imensos constrangimentos de tempo, o tal casal já vai alegremente na quinta temporada. Impressões? Envelheceu bem. Continua a ter imensa piada. O gostinho do "aahhhh, este é aquele em que...". E a Julia Louis-Dreyfus é tão espectacular.

Continuando no mood "cu alapado no sofá", o filme da Viúva Negra já está disponível no Disney, pelo que tunga. Cenas positivas: não dura os horrores que os últimos filmes de super heróis tornaram moda. Chiça, é uma cena de acção, não é preciso quatro horas para contar estas histórias. Que ricos soninhos que os Avengers me proporcionaram. E agora baixinho, para não irritar cerrrtos senhorrrres: é um filme muito feministazinho, olé se é. Como me mate resumiu, muito bem: os homens ou são vilões, ou uns inúteis, ou só aparecem para dar um jeitinho. Verdade, elas dão (muito) bem conta do recado. E há a cena do colete. Com bolsos. Lágrima de quem sofre à procura de saias e vestidos com bolsos. Se não é uma piscadela de olho ao público feminino, parece. Eu prefiro acreditar que sim. E tem a Florence Pugh. Caraças, esta miúda (25 anitos, fui googlar, ainda tem tanto para fazer, que alegria) é fantástica, maravilhosa. Faz de tudo, e bem, (Midsommar, pulizeee, a sério, façam o favor de ver). Também gostei muito da (spoiler moderado) cena em que a Florence está a ver o Moonraker na tv, quero acreditar que é outra piscadela. Uma mulher James Bond? Estou com o Daniel Craig, não. Porque não é preciso: há outras histórias para contar onde as mulheres podem ser protagonistas, e em melhor. Como este demonstra. Roubando as palavras a Indiana Jones, "it belongs in a museum", o James Bond.


E o livro? Vou ser atrevida, e recomendar um que ainda não acabei. Mas estou a gostar tanto, tanto, que não vou esperar:


(já está traduzido, mas quando comprei ainda não havia)

Pá. Pá. Oh pá. 

Tão bom. Estou a aprender tanto, e precisava / preciso de aprender tanto. Abre a mente, os olhos, novas perspectivas. E isso é importante, imprescindível:

"This is the difference between racism and prejudice. There is an unattributed definition of racism that defines it as prejudice plus power. Those disadvantaged by racism can certainly be cruel, vindictive and prejudiced. Everyone has the capacity to be nasty to other people, to judge them before they get to know them. But there simply aren't enough black people in positions of power to enact racism agaisnt white people on the kind of grand scale it currently operates at against black people. Are black people over-represented in the places and spaces where prejudice coulkd really take effect? The answer is almost always no."

(...) 

"White privilege manifests itself in everyone and no one wants to take on responsability. Challenging it can have real social implications. Because it's a many-headed hydra, you have to be careful about the white people you trust when it comes to discussing race and racism. You don't have the privilege of approaching conversations about racism with the assumption that the other participants will be on the same plane as you."

(...)

"White privilege is a manipulative, suffocating blanket of power that envelops everything we know, like a snowy day. It's brutal and oppressive, bullying you into not spreaking up for fear os losing your loved ones, or job, or flat. It scares you into silencing yourself: you don't get the privilege of speaking honestly about your feelings without extensively assessing the consequences. I have spent a lot of time biting my tongue so hard it might fall off."

E cheguei ao capítulo sobre feminismo, prevalência de mulheres brancas no movimento, resistência em falar sobre raça / racismo, e importância da interseccionalidade. O que me está a fazer questionar / problematizar se o que se passa hoje entre o movimento feminista e a comunidade trans não reflete este problema / resistência, mas ainda não cheguei a conclusões seguras.

Enfim, estímulo para as celulazinhas cinzentas, e um abrir de horizontes. Preciso. Recomendo. 


 

8 comentários:

  1. Estava a faltar o serviço professora Izzi recomenda. É que desde a última já vi o Saul todo! Tão bom.

    Agora estamos num recomendado por um amigo, um mockumentary de uma família de vampiros "what we do in the shaddows" que aqui passa na BBC mas és capz de encontrar aí tb. "We've found people half drunk in the cellar." "Half drunk? You mean... " "yes, please finish drinking one before you start the next!"

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    1. Ainda bem que gostaste do Saul! What we do in the shadows é TÃO bom! ainda não começámos a terceira temporada, mas somos muito fãs. Cá está na hbo.

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  2. O movimento feminista anglófono realmente tem uma história de preponderância branca (refletindo a estrutura de poder da sociedade onde está inserido). Um bom livro que li há pouco tempo sobre isso foi o Women, Race & Class da Angela Davies. Ela fala da história do movimento feminista e anti-racista americanos, e as confluências e divergências. Basicamente nenhum tradicionalmente serviu as mulheres negras adequadamente.

    O atrito c o activismo trans atual não se pode comparar com essa falta de atenção à raça do movimento feminismo. Aliás, este atrito é bastante único no sentido em que nunca se esteve na situação de um grupo marginalizado (especificamente pessoas com identidade de género feminina ou mulherees trans) exigir pertença a outro grupo marginalizado (mulheres) e em consequência redefinir o próprio significado desse grupo sem permitir discussão sobre o assunto. (Várias das feministas britânicas mais outspoken nesse debate são aliás mulheres negras, lésbicas, de esquerda sindicalista e socialista. A intersecionalidade não é pois o problema nesse caso.) Em havendo interesse em abertura de horizontes e de ir ao âmago das questões filosóficas no centro desse atrito recomendo Material Girls de Kathleen Stock.

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    1. D.S., nem por acaso, há pouco tempo li um livro da Angela Davies, uma colectânea de textos, e fiquei muito curiosa relativamente ao Women, Race & Class. Mas só o encontro em formato ebook, talvez compre para o kindle.

      A questão trans não é simples, e pelo que me é dado ver existe um antagonismo muito violento, às vezes odiento, que tem de ser ultrapassado - por ambas as partes. Com franqueza, no que toca à redefinição do que é ser mulher, ou feminista, acho que o movimento trans está a ser excessivamente radical. Do que percebi, querem definir o que é ser mulher (biológica, com cromossomas XX) por oposição a um conceito mais lato que abranja trans, e as definições propostas, de parte a parte, chegam a ser ridículas. Nem todas as mulheres menstruam (menopausa), nem todas as mulheres têm útero (trans ou não trans), enfim. Acho que se está a perder demasiada energia com esta questão, em vez de haver uma confluência no sentido de atingir uma convivência que sirva tod@s. Depois, o epíteto terf é usado com, hum, excessiva liberdade... e muita acrimónia. É natural que mulheres XX tenham dúvidas; colocá-las e querer esclarecê-las não é o mesmo que ser transfóbico. E percebo algumas reticências sobre uso de espaços comuns, como casas de banho (aqui sou muito flexível), prisões ou lares de acolhimento (aqui já tenho muitas dúvidas). Há muitas, demasiadas mulheres sobreviventes de crimes e abusos sexuais, ou crimes de género, e é natural que para estas a simples possibilidade de convivência, num espaço que viam como seguro, com pessoas com pénis é um trigger. Não se pode apagar e esquecer o trauma destas mulheres, embora se reconheça que as mulheres trans também são oprimidas em razão da sua natureza, e vítimas preferenciais de crimes sexuais. Enfim, talvez um dia se atinja alguma serenidade. Não gosto do clima agressivo em que esta questão se tornou.

      Obrigada pela recomendação, vou procurar esse livro.
      E parabéns, pela maratona de Londres! Valente!

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    2. O Women, Race & Class e' muito bom. Explica como a luta das mulheres negras na America era mais pelo reconhecimento da importancia da familia e da escolha de poderem ficar em casa, uma vez que tradicionalmente sempre se viram obrigadas a trabalhar fora de casa, especialmente como e' obvio durante a escravatura. Ao passo que uma das lutas principais do movimento feminista (classe media, branco) sempre foi a luta pela entrada no mercado de trabalho em paridade com os homens e a reducao do trabalho de casa nao-remunerado. Igualmente com a questao dos direitos reprodutivos: para as mulheres negras americanas, essa luta sempre foi mais lata do que a legalizacao do aborto, pelas sua experiencias de aborto e infertilidade impostas pelo Estado em determinados momentos da historia. Mas importante sempre notar que esta e' uma experiencia especificamente norte-americana, e noutras sociedades a bagagem historica racista tera contornos diferentes (ainda me lembro quando em 2018 fez 100 anos que as mulheres no UK ganharam o direito de voto e houve algumas criticas do outro lado do oceano a dizer que era errado dizer isso porque foram so algumas mulheres, e as mulheres negras nao ganharam esse mesmo direito em 1918 - o que e' completamente errado, as linhas aqui tracaram se por classe, nao por raca).

      Sobre a questao trans, estamos de acordo. Nao e' uma questao simples, e as diferentes posicoes nao estao claramente divididas entre esquerda e direita, ou progressistas sociais e conservadores, como muita gente tenta pintar (mais uma vez, a experiencia norte-americana, onde realmente as pessoas trans estiveram sob ataque de um governo populista de direita sob o Trump, a dominar a consciencia coletiva). O que me gela os ossos e' esta ansia de cancelar ou denegrir tudo e todos que ponham questoes sobre a direcao que o ativismo trans mais radical esta' a tomar (e aqui no UK pelo menos tomou conta dos ciclos progressistas tipo universidades, partidos de esquerda, outros movimentos sociais de maneira estonteante, sem deixar espaco para debate). Ha casos onde que ha conflito de direitos, como os que enumeraste, mais o desporto, que para mim e' um dos mais obvios onde o sexo biologico e a identidade de genero mais chocam. Essas situacoes de conflito de direitos tem de ser reconhecidas para se poder debater como melhor acomodar todas as partes. E' disso que se fala quando se diz que e' preciso debate, nao estamos a debater a existencia nem a validade de ninguem. Isto nao e' possivel quando, como dizes, TERF e transfobico sao usados muito ligeiramente, e quando ha repercussoes graves de carreira para muita gente que nao segue 'a risca a mantra TWAW. E depois ha toda a questao da linguagem e de como a palavra "woman" tornou-se quase um tabu, falando-se em "uterus-havers", "menstruators", "bodies with vaginas", ao passo que a palavra "man" continua intocada... A inclusividade na linguagem e' importante, mas nao e' a unica coisa importante e o ativismo feminista precisa de palavras claras para exprimir o problema do sexismo e misoginia que as mulheres enfrentam.

      Enfim, podes crer que isto e' um assunto que tem tomado demasiado tempo e energia ao movimento feminista, em detrimento de foco em problemas que afetam a vida material das mulheres e pessoas trans.

      Obrigada! x

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    3. Essa questão da classe social de que a mulher é proveniente é muito relevante. Tenho um exemplo na família: a minha avó paterna vinha de uma família pobre, de agricultores, com muitos filhos, e veio "servir" para Lisboa ainda muito nova. Era o que era, para as meninas de famílias pobres, arranjar posição numa casa de gente abastada era uma boa perpectiva de futuro - e, no caso, parece que o meu bisavô se assegurou que era uma casa de gente decente, sem histórias de maus tratos e abusos a criadas. Para a minha avó, ter casado e passado a ser dona de casa foi uma libertação. Tinha orgulho no facto de o seu trabalho ser cuidar da sua casa, marido e filho. Agora acrescente-se à pobreza o facto de ser negra e ter um passado de escravidão, é perfeitamente compreensível que o ser dona de casa fosse uma ambição e libertação.

      Quanto ao resto, pois, vejo demasiado ódio e dedos apontados. Tenho as minhas dúvidas e reticências em determinadas questões, mas consigo dividir a questão do sexo e género, e, para mim, uma mulher trans é uma mulher. Se o facto de colocar dúvidas faz com que me chamem terf, quero lá saber: sei quem sou, defendo acerrimamente o direito à autodeterminação, abomino a discriminação e violência sobre pessoas trans, desejo que sejam tratadas com toda a consideração que qualquer ser humano merece, e que, principalmente, sejam felizes, tenham o direito a viver a sua verdade.

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    4. Olha, nem de propósito:
      https://www.theguardian.com/world/2021/oct/28/sussex-professor-kathleen-stock-resigns-after-transgender-rights-row?CMP=fb_gu&utm_medium=Social&utm_source=Facebook&fbclid=IwAR1J3ZwE3PJb6NsPSCYT9pURxlJ_ozLObXxcJ9EDX9r6q4pgLeNI0l255nE#Echobox=1635435867

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    5. Sim, a classe, tão importante nestas conversas de intersecionalidade mas tantas vezes esquecida.

      Quanto à demissão, infelizmente não me surpreende, o que me surpreende é ter aguentado tanto tempo nestas circunstâncias. É intolerável a uma professora lhe ser recomendado que arranje um guarda-costas para poder continuar a lecionar numa universidade. A resposta da universidade foi a correta, mas a falta de apoio de colegas e do próprio sindicato vergonhosa. Tendo lido o livro dela, que considero uma exposição simples, racional, sóbria e empática sobre o tema e as partes envolvidas, revolta-me este assédio tribal e cego de que tem sido alvo (o mesmo com a JKR btw).

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