quinta-feira, 13 de setembro de 2018

P'lo direito a uma m'lher se passar (valentemente) da marmita

Menina e moça minha mãe me educou para o feminismo: que nós podemos fazer tudo o que eles fazem, menos xixi de pé. Quer dizer, até se pode, mas há uma grande probabilidade de correr mal. Direitos iguais, deveres iguais (consequente e naturalmente), e que nunca me deixassem convencer do contrário. Também me introduziu nas falácias do argumentário opositor: não, o facto de um homem, por princípio, conseguir acartar uma saca de batatas às costas não prova que há diferenças naturais e físicas (e outras, suspiro, nem entro por aí, ainda sou do tempo do estribilho "as meninas não têm jeito para matemática", fica para outro dia), ergo, isso da igualdade é parvo. Uma mulher também gera filhos, um homem não, e depois? Igualdade de direitos e deveres não equivale igualitarismo, o que se pede é igual dignidade, igual tratamento perante a lei, igualdade de oportunidades e de acesso a estas, ou seja, que ninguém seja discriminado em função do género, tal como ninguém deve ser discriminado em função de cor de pele, religião, orientação sexual, e por diante.

Alertada também fui que a luta pela igualdade não implica que se mimetize comportamentos normalizados e aceites ao género masculino, e que são em si errados ou censuráveis: cuspir para o chão, por exemplo, é feio, seja-se homem ou mulher (ou transgénero, ou seja o que for). Nesse aspecto, fazer igual é má criação, não é libertação. Idem aspas para outros tantos comportamentos, como o piropo ou assédio, andar à bulha, ou praguejar. A minha mãezinha é muito coisinha com o uso do palavrão: não aprova. Mais que um "merda" dito em ambiente seguro e/ou familiar é feio, muito feio. Logo lhe havia de ter saído uma filha com costela de carroceira, já lá vamos. Já noutros aspectos como depilar ou não depilar, usar calças (a minha mãe é do tempo em que menina ou mulher séria não usa calças), ter cabelo curto ou grisalho, cada um/a que faça como lhe aprouver, são coisas de foro pessoal e inatacável.

Ora se tudo me fez muito sentido, sim senhora, e ainda hoje faz parte do (mais alargado, atenção, isto não é só nem tudo) núcleo duro do meu feminismo, a parte do praguejar e bulhar (embora excluindo o confronto físico) é que me caiu muito mal. É que eu tenho uma visão muito libertadora da actividade de barafustar, e uma prática muito livre do uso do palavrão. Como uma taça de gelado, uns quadradinhos de chocolate, meio quilo de cerejas, é algo que às vezes me cai tão bem. Mesmo o que precisava para acalmar uma arrelia, para me resolver uma contenda ou acabar um dia especialmente mau. E, tendo sido fadada com um feitiozinho muito especial, daqueles que (já menos, felizmente) me leva do zen ao holocausto nuclear em sessenta segundos, caramba. Não se faz. Eu preciso e, em calhando, eu passo-me dos carretos. Eu preciso e, em se ocasionando, eu uso uma linguagem de fazer corar as pedras da calçada.

Dito isto, não, não é característica de que me orgulhe. Aprendi a lidar com ela, nisto a idade de facto traz sabedoria, mas pronto, sou assim, uma bestinha que faz favor, em se reunindo as condições adequadas. E essas condições adequadas, que também podemos definir, mais doutamente, como estímulos externos, nem sempre são justas ou justificativas do passanço. Ou seja, pode acontecer barafustanço / praguejanço face a situações que o estavam mesmo a pedir, ou não. Sou humana, pá. Também tenho dias maus, susceptibilidades, fraquezas, e pode suceder estar num dia em que me vire para o outro lado pela casca de um alho, ou, também possível, aquela casca de um alho que veio acumular a muitas outras cascas de alhos, e pronto, calhou azar, foi aquela que me fez saltar a tampa.

Sou pior por isso? Se calhar. Em minha defesa, alego que o meu último passanço ocorreu quando num evento social me sentaram em frente a um patet'holístico anti-vacinas. completamente justificado, hein, não aceito contraditório. Consegui parar antes de  me sair um "burro do c*r*lho" ou pior, já não é mau. A Izzie de 15, 16 anos espantar-se-ia. Mas também já aconteceu - e ninguém ficou mais espantado que eu, apesar de os olhares de quem me conhecia de outros e mais exaltados tempos terem sido também de puro espanto - ter-me levantado durante um jantar para ir fumar um cigarro a meio de uma diatribe racista de um outro conviva. O "ir lá fora fumar um cigarro" tem-se revelado um grande coping mechanism, já agora (ainda não tinha usado uma palavra em ixtrancheiro, hein!).

Sumariando: a) passo-me da cabeça; b) em acontecendo, pode suceder acumular com ser muito malcriadona ao nível do uso da caralhada; c) não, não é bonito ter esta característica; d) mas tenho; e) a maioria das vezes descarrilo em situações em que presencio actos indefensáveis, ou alguém desata a expor ideias / opiniões completamente ofensivas ao nível de direitos humanos, respeito básico pelo outro, ignorância atroz, civismo, enfim, coisas mêmo, mêmo; f) mas também já aconteceu descer do salto e rodar a baiana em situações de cúmulo de picanços por merdinhas a que não devia dar importância; g) também já descalcei a chinela e pus a mão à anca em ocasiões completamente injustificadas, fruto de ou i) uma excessiva susceptibilidade; ii) mal entendido; iii) errada interpretação  / leitura (minha, só minha) da situação.

E agora, desde já parabenizando quem conseguiu chegar aqui, o ponto da questão: ainda assim, defendo e exercerei o meu direito ao passanço. Mesmo correndo o risco de ser injustificado. Ou exagerado. E não admito, porque não admito mesmo - e aí a expressão "holocausto nuclear" assumirá logo um contexto quase literal - que, em me passando e, quiçá invectivando, seja admoestada porque "te fica mal", "não é um comportamento de uma senhora", "ai que figura", "estás histérica", "não sejas ordinária", "não passas de uma arruaceira", "estás a deixar mal a/o tua/eu [inserir tema ideológico em causa]", "pareces uma peixeira", "estás completamente descontrolada", "deve ser aquela altura do mês", "não tomaste a medicação", "estás descompensada", "uma doida varrida", "falta de homem"; quando um homem, nas mesmas circunstâncias, até poderá ouvir que "passou das marcas", "exaltou-se", se calhar até "exagerou" ou "não havia necessidade"; mas, mas, mas, afinal é uma pessoa com "ideais muito arreigados", "muito assertivo", "defende aquilo em que acredita", "é natural, sentiu-se ofendido / atingido" e "quem não se sente...", além de que "já sabem que é assim, não o provocassem", ou "caramba, é genioso".
É que aí solta-se a Izzie de criação suburbana e, além do chorrilho de asneiredo, ainda levam uma cabeçada à Cais do Sodré que andam a cagar dentes uma semana; um rotativo nos queixos que têm de comer a sopa por uma palhinha; ou com uma tábua nos cornos que para verem televisão têm de por os óculos na nuca.


[este post poderá - ou não - ter sido inspirado num episódio de passanço da vida real - alheia - mal/não/in/justificado, e principalmente nas reacções que se lhe seguiram]

13 comentários:

  1. Estou curiosa para saber qual teria sido o "pormaior" que teria dado azo a semelhante passanço. Entretanto deixo um :) porque há c'anos que não me deparava com a expressão "rotativo nos queixos" e de repente voltei a ter 15 anos outra vez.

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  2. O passanço não foi meu (aleluiua!), mas da Serena Williams. Parece que ela não tinha razão para refilar com o árbitro e acusá-lo de sexismo (o tipo é conhecido por ser rigoroso, seja com quem for), mas tem direito a passar-se sem ser acusada de histérica, ou de deixar mal a causa feminista (por causa das acusações infundadas de sexismo).

    Ah, o rotativo, tão celebrizado por estrelas de série B como o Van Damme (e também o Chuck Norris). Fui criada e adolescentei no subúrbio, eram expressões que se usava ;)

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  3. Pois... também tentei explicar a muito homem porque é que a Serena teve uma certa razão em ter sido menos Serena. Lá que a coisa não lhe estava a correr bem e passou-se pq viu que ia perder ok. Mas é verdade que o senhor árbitro tb foi zeloso ao extremo e outros árbitros não teriam aplicado penalidades a atletas homens em alturas tão decisivas. Teria ficado melhor ao sr ramos que a menina pouco serena tivesse perdido para alem da sua benevolência.

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    1. Aenima, parece que sim, que este árbitro é zeloso ao extremo, mas é assim sempre. Sinceramente, nada contra; é o trabalho dele. quem estará mal serão outros árbitros mais complacentes, se calhar. Mas ela tem todo o direito a passar-se. Depois há consequências, mas tem o direito :D

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    2. Não acho que quem está mal são os outros árbitros. Acho que quem está mal são todos os árbitros. A avaliação tem que ser consistente em todos os avaliadores senão a injustiça para os avaliados é grande. É como teres um exame nacional corrigido por mil profs diferentes... não interessa se o prof que corrigiu a tua prova é muito exigente e ele é que está certo e não os restantes 999 que são benevolentes. Ele é que está errado pq prejudicou a tua entrada na faculdade face aos teus colegas por aplicar os critérios com outro grau. E era disto que a Serena se queixava - ou são todos exigentes por igual ou em não sendo, estão a ser injustos com os jogadores avaliados.

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    3. com franqueza, percebo pouco da coisa para poder ter uma opinião. Não sei se todos os outros árbitros são complacentes, ou se também assinalam atirar de raquetes. Mas concordo que devia haver um procedimento mais uniforme, isso sim

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    4. Este caso é um excelente exemplo que devia servir para que as organizações de arbitragem no desporto reflectissem sobre os critérios de avaliação e coordenar métodos para os aplicar. To ténis, futebol, etc.

      Em vez disso gasta-se tinta com uma gaja passada. Parece que é incomum e tal....ptssss não há paciência.

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    5. Concordo com o teu texto. E a Serena tem direito a passar-se, pois tem. Eu vi o jogo e acho que todos têm direito a ter mau perder, desde que depois aguentem as consequências. Não é a primeira vez que a Serena faz cenas destas quando se vê a perder...

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    6. Sim, há sempre consequências. Então se o passanço for injustificado, maiores serão.

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  4. O palavrão é como jm super-poder, interessa saber quando usar na vida social. Dá logo outro tom ao passanço, mostra logo que estamos a sério. E o gajo anti-vacinas devia estar agradecido por não levar com um prato nos cornos.

    Em relação à Serena,ela tem direito a passar-se quando é chamada de macaca histérica. É uma ofensa abominável.

    Não tem o direito, contudo, de se esconder atrás do feminismo para se queixar da derrota. Já vi muito ténis, o coaching nunca era ignorado, as raquetes partidas eram sempre penalizadas. Mais razões para protestar teve aquela tenista penlizada por levantar o pólo.

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    1. Filipa, por acaso uso cautelosamente o palavrão na vida social, coisas da idade. entre amigos é outra coisa (coitados), mas há pessoas que me tiram do sério. Anti-vacinas são umas, racistas e que tais outras.

      O chamar do feminismo à discussão foi onde ela andou, notoriamente, mal - pelo menos naquele caso. Talvez um dia o reconheça. que há machismo no desporto em geral, ui, nem se fala, e ela leva muita bordoada desde sempre. Ainda me lembro de a descreveram de uma forma muito, hum, pouco simpática por ser uma matulona, e não ter a "graciosidade" de outras atletas, num misto de machismo e racismo velado.

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  5. A Serena tem todo o dto a passar-se, eu carroçeira me acuso (a minha mãe deve dar voltas na campa de cada vez q afino), mas tb n creio q isso a faça ter razão.
    Como disseste, e bem, o facto dos homens o fazerem n quer dizer que torne a situação correcta,é uma questão de bitola e n devemos apontar para baixo.
    E pelo q percebi o árbitro procedeu como é habitual pelo que tb estar a acusar o homem injustamente de sexista e descriminação não me parece lá uma coisa mto bonita, nem merecedora de aplausos.
    Mas tou ctg, fico puta da vida com a merda da conversa (mto condescendente,by the way) do "ai fica-te mal, uma mulher não faz isso" é logo um puta que os pariu a todos 😉

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    1. Me, aqui a Serena andou mal por querer fazer do caso uma situação de sexismo, quando era só de rigor na aplicação das regras. Parece que queria fazer baixar a bitola, do tipo se dão abébias aos homens, também quero: isto não é feminismo, é nivelar por baixo. Há é que exigir rigor a todos.
      Agora passou-se, sem razão, tem todo o direito: depois sujeita-se às consequências.
      O que me chateou foi a reação, essa sim sexista, dos media e comentadores das redes sociais, como se aquele comportamento fosse mais inaceitável por vir de uma mulher. Oh pá, aí é mesmo p que paiu ;)

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