terça-feira, 12 de abril de 2016

Ai, ai, ai, minha machadinha

Às vezes ler é uma dureza. Neste momento vou no terceiro volume da Ferrante e, findo este, acho que vou fazer uma pausa higiénica. Ó Izzie, tão valentona, tão cheia de ar que tu és, e não te aguentas à bronca? Não. Ui, temos menina? Vejam lá, criada no subúrbio puro e duro e agora deu em flor das avenidas, ai, ai.

Nada disso. A dureza não é o conteúdo - que o é, há que dizê-lo, mas é digerível, ao contrário de As Benevolentes e Viagem ao Fim da Noite, livrinhos que tive de deixar em pausa sob pena de cortar os pulsos com uma faca de plástico, e mesmo assim seria menos dolorosa a agonia.

A dureza, pá, a cena, méne, o que me mata, gaije, é a tradução e revisão. No último caso, a falta dela. Pá, não se admite. Nem é por haver muita gralha, que não há (kudos! eu distraio-me muito com gralhas, às tantas ponho o livro de parte e dou comigo a jogar-lhes pedacinhos de pão), mas há ali uns vícios que, pá, méne, cena. Muitos "a ela" e "a ele", exemplificando, mas não citando: "sicrano disse a ela", "fulana pediu a ela", por aí fora. Nerfes. Sou uma pessoa muito doente, e filha de uma senhora muito doente que amarinhava paredes quando ouvia alguém dizer "então diga a ela". Pegou-se-me. E enerva-me sobremaneira.

Ainda assim, passava. Como conheço mal o italiano (só de ouvir), ainda atribuí a coisa a um qualquer vício de tradução, afinal os italianos dizem muito "a lei" e tal (provavelmente mal grafado, não leio ou falo italiano, quanto mais escrever). O santo protector das traduções bem sabe quantas vezes o inglês "realize" acaba traduzido como uma qualquer realização, é indefensável (e preguiçoso) mas às tantas um gajo desculpa, que um gajo sofre dos nervos mas tenta ser magnânimo. A gota d'água, meujamigos, foi um desfolhar. E não se falava de uma árvore ou qualquer outra espécie vegetal, era um livro. Que alguém, ao que parece, desfolhava. Não retirando folhas, mas passando-as. Pá. Não. Se. Faz. Méne. Cena. Meretriz que deu à luz. E tal "desfolhada" nem era descrita em itálico, ou na voz de um personagem mais iletrado, o que até maizoumenos desculparia, não, era a narradora, eminente licenciada em letras. Parece mal é o mínimo. Cansei. E ainda outro dia li uma recensão que gabava a tradução. Claro que não podia gabar a inexistente revisão. Pause.

22 comentários:

  1. Eu vou começar agora o terceiro, mas confesso que não reparo tanto nessas coisas - a não ser que sejam mesmo de bradar aos céus - quando vou mesmo embalada na história.

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    1. Lá está, Luna, não sofres tanto dos nervos como eu. Confesso que me estraga o prazer da leitura, estas pedrinhas em que estou sempre a tropeçar. E o pior é que os livros são mesmo muito bons, e a tradução, no geral, também é boa. Será cansaço, pressa? Epá. eu sei que são mal pagos, e muitos abracinhos aos tradutores, que os amo deveras, mas já se sindicalizavam. Por nós, ao menos por nós :'(

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  2. Ui. Ai. Foste tocar em assunto muito sensível - no que me diz respeito. Se há UMA coisa que me faz desgostar de uma leitura, é uma má tradução ou um mau trabalho de edição e/ou revisão.
    Leio, na grande maioria, livros traduzidos do inglês. E ando com o azar de, em algumas das últimas leituras que escolhi (especificamente, em um ou dois Daniel Silva e dois Nesbø; ando virada para coisas de polícia, espionagem, acção) apanhar uma senhora que me dá cabo dos "nerfes" :) Desde uma "curva em U" a um "não á problema"... Passando por um total desconhecimento ou incompreensão das expressões idiomáticas em inglês. Um exemplo, este de um dos últimos Nesbø que li: personagem leva murro na traqueia e fica incapaz de falar decentemente. Grasna imperceptivelmente a Hole: Ulktrrbl [sic, como está no livro]. Hole responde: o quê? Personagem consegue sibilar: Estás com um aspecto terrível! Ora, é óbvio que ulktrrbl é um género de acrónimo onomatopaico (à falta de melhor termo) para You look terrible. Não seria a opção mais inteligente tentar a onomatopeia na tradução, mas em português? Só pode significar que quem traduziu não chegou lá, ao you look terrible que se repete letra por letra abaixo. Irrita-me tanto, mas tanto.

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    1. Ah, esse a sem agá é de ter uma apoplexia. Não tenho dado com coisas dessas, felizmente. curva em U é porreiro (ahahahah), mas a última, pois. Pressa? Sei lá. Mas podia ser pior, a quantidade de más traduções de "false friends" que tenho visto, caraças.

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    2. Pois. É triste. Por outro lado, há que também louvar o que é muito bom. E dentro das traduções costumo referir sempre a mesma pessoa, pelo nome, para que toda a gente saiba: Alice Rocha. Muito, muito boa profissional. Quando vejo o nome da senhora, já bato palminhas. Fez a trilogia d'O Século, entre outras coisas.
      Moving on... tenho os três primeiros volumes da tetralogia da Ferrante para começar, mais dois dos mais antigos dela. Como a tradução é um non-issue (as versões que tenho estão em inglês), já devia ter-me feito ao caminho, não é? Tenho ouvido dizer tão bem que nem sei como ainda não lhes peguei. (sou do contra, é o que é)

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    3. Fui ver: tem duas (!!) revisoras creditadas. Juro. O resto ainda vá, mas não perdoo o desfolhar, num mundo cada vez mais triste e duro. Mas atenção: em termos de narrativa a tradução está escorreita e boa, sim senhora.

      A tetralogia, ui. Estou a gostar muito. Não é coisa que consiga ler à velocidade da luz, precisa de calma para degustar. Já percebi o sucesso, principalmente entre mulheres, e posso só aconselhar muito ;)

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    4. Acho que de todos os géneros, a tradução literária é mesmo a que nos coloca mais problemas, precisamente por causa de particularidades linguísticas que nem sempre (quase nunca)encontra na língua de chegada uma correspondência que satisfaça amplamente o original. É necessário recorrer a ferramentas que nos permitam encontrar esses termos.
      Já agora, a Queen of Hearts permite-me uma pergunta? Porque diz que a na versão inglesa dos livros da Ferrante a tradução é um non-issue? Não é essa também uma tradução do italiano?
      Dulce/Porto

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  3. Sinto-me tão melhor depois de ler este post :)
    O problema é reparar no primeiro "erro". Depois reparamos em todos e em vez de ler andamos à procura dos restantes em vez de curtir a história. Eu pelo menos sou assim.
    (tenho o primeiro volume para ler, a ver se ganho coragem. Para já ando a deliciar-me com o Jonathan Strange e Sr. Norrel. Depois só preciso pôr as mãos na série da BBC)

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    1. Patrícia, isso mesmo, uma pessoa "empanca". E depois começo a matutar, e a pensar se não serei eu a exagerar, se não estou errada, se aquela frase coise. Mas no geral, sublinho, a narrativa está muito boa, o que me faz presumir uma boa tradução; o mal estará mais do lado da revisão, talvez.

      Tenho lá esse Jonathan, de mate, ainda lhe pego

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  4. Pode ter havido revisão e o tradutor embirrar e recusar muitas das alterações (já me aconteceu).

    Somos considerados uns pedantes e cada vez mais dispensados.

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    1. Olha, pedantes... puristas, talvez, mas o jeito que dá um purista, nem te conto. Eu, se pudesse, tinha um revisor só para mim. Escrevo muito, sou um bocado gralhuda, e ele há dias em que uma pessoa já nem revê bem o que escreveu. Outro dia, a ler umas coisas cá minhas antigas, dei com uma foca no lugar de um fica (este nem envergonha muito, enfim), e um plural muito analfabruto onde devia ser um singular (muita vergonha). Quem acha que o revisor é dispensável nunca pensou na vergonha que um simples lapso pode acarretar: um colchão passa facilmente a testículo, e um carvalho a órgão sexual...

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  5. Este é um tema que chama por mim, já sabes.
    Todas as traducões que faço aqui no escritório são revistas por outros. Gente que sabe da poda. E, mesmo assim, às vezes, dou comigo a olhar para a versão final e a achar que "aquilo ali não me soa bem". É uma dor de cabeça.
    Para mim, uma boa tradução, é aquela que não se se nota, isto é, quando lês um texto traduzido e não consegues perceber ali nenhum traço linguístico da língua de partida. Isto é dificílimo de fazer, mas não é impossível. Normalmente, o segredo é rever no dia seguinte o que fizemos, dá-nos a distanciação suficiente para descobrir pequenos detalhes que na tradução "corrida" nos escaparam dos dedos. Só que às vezes(tantas vezes!) não há tempo para isso.
    E um revisor é absolutamente imprescindível.
    Vou-te contar uma coisa que me aconteceu há tempos a este propósito (pá, é mesmo vergonhoso, a sério, prepara-te).
    Estava eu a fazer a tradução (de ingles) de um diálogo. Uma das personagens pergunta se pode beber alguma coisa e a outra responde: "Help yourself!". Sabes como eu traduzi assim logo ali? "Ajuda-te a ti própria!" Eu podia agora dizer que estava cansada, pressionada, a trabalhar há horas - o que é verdade - mas na realidade isto é a patacoada do século, é inaceitável e um erro crasso.
    No dia seguinte, quando fui rever o que tinha feito no dia anterior para continuar a tradução, ia desmaiando quando li aquilo. Devo ter esgotado o meu stock de palavrões, quase bati em mim própria e depois... desatei a rir.
    Felizmente nem o revisor teve oportunidade de ler esta pérola.
    Isto não quer dizer que "desculpe" as falhas que apontas, pelo contrário. Eu própria não consigo ler um livro sem torcer o nariz...
    Há bons e maus tradutores e até há muita gente que faz traduções e que nem sequer é tradutor. Sabe umas coisas de ingles (principalmente ingles), vê uns filmes, ouve umas músicas e pronto, já está.

    Dulce/Porto

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    1. Dulce, vê isto como um elogio: não te imaginava, nunca!, a fazer uma trapalhada dessas com o help yourself. Mas sim, acontece, isto é um chavão mas só se engana quem trabalha. E por isso é TÃO importante o tradutor ter tempo, e claro, ser bem pago. E haver revisão!
      Às vezes faço trapalhada monumentais. O tal plural de que falei ali em cima foi numa palavra composta (com hífen, não sei se se chamam mesmo compostas, sou uma nódoa em gramática, i.e., não sei o nome das cenas), escrevi qualquer coisa como guarda-chuvas. Horror. Foi pressa, cansaço, etc, mas a figura que se faz é de analfabruto. Não tanto como se escrevesse que houveram dias, mas pronto.

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  6. Olá, venho eu em defesa da classe - embora saiba que a Izzy não esteja a atacar ninguém, apenas a criticar o produto final.
    Traduzir livros é difícil, é um serviço mal pago e, em geral, apressado. Ficar 8 horas à secretária com o cérebro a funcionar em dois idiomas, a digitar, é extremamente exaustivo, embora pareça "fácil". Não é. Então, se o tradutor tem 40 dias para produzir 400 páginas, por exemplo, a tendência é que ocorram muitos erros, desde gralhas até gafes de tradução. Por quê (o meu "por quê" é brasileiro :))? Porque, chega uma hora, o cérebro vai no automático e, depois de dias de trabalho ininterrupto, os olhos não enxergam os erros que o olhar mais descansado do leitor é capaz de notar.
    Eu traduzi um livro terrível, com muitas cenas de violência explícita (e estava grávida, na fase dos enjoos) e o prazo era apertadíssimo, não haveria tempo para uma revisão descansada no final. Comentei isso com a editora que disse para eu não me preocupar, que a tradução seria revista e editada.
    O que aconteceu? O livro foi impresso como saiu do meu computador, e já vi leitores acabando com a minha reputação. O texto tem gralhas principalmente e gafes como repetição de palavras na mesma frase, etc, problemas que teriam sido evitados com uma revisão adequada.
    Mas fui eu quem ficou com a má fama.
    Enfim, quero ler o terceiro volume - mas leio em inglês, comecei assim e assim continuarei, é bem mais barato na Kindle Store -, é muito pesado ou no mesmo nível dos outros dois? Fiz uma pausa para digerir melhor a história.

    Abraços,

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    1. Dani, obrigada pelo testemunho, a sério. Sou mesmo solidária, porque acho que a tradução é uma profissão mal paga, para o que se faz. Caneco, estamos a falar de uma obra e, de facto, 40 dias para produzir 400 páginas é uma loucura. Tenho o sonho de que as editoras portuguesas invistam mais neste campo. eu sei que o mercado é pequeno, nada que se compare ao mercado da língua inglesa ou francesa, mas uma tradução bem feita e bem revista fica para sempre!
      A tradução para português da Ferrante está boa, que está, mas precisava de mais revisão. E, muito provavelmente, mais tempo. Sei lá, para o tradutor até poder comparar com edições em inglês e francês, tirar dúvidas. Cá em Portugal nota-se, e muito, que cada vez se dispensa mais o revisor, e é pena, que há-de haver muitos e bons sem trabalho. Enfim.

      Optei pela versão portuguesa, apesar da inglesa ser, de facto, muito mais barata, principalmente para kindle. Estou a gostar muito do terceiro volume, a fase "madura" da narradora. Também acho que é uma história que merece ser lida com toda a calma. Boa leitura :)

      (outra coisa que me chateou muito foi o facto de a contra-capa do quarto volume, que entretanto me ofereceram, ter um enorme spoiler. fiquei para morrer. qualquer pessoa que esteja a começar: não leiam a contra-capa do quarto volume. a sério. acaba por estragar o segundo e terceiro.)

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    2. Obrigada pelo aviso, por acaso já o tenho mais não li. :)

      Entretanto, às 20 páginas do terceiro volume, a única coisa que me chama a atenção e distrai são as palavras hifenizadas nas mudanças de linha, coisa que raramente se vê hoje em dia e que ia jurar os outros não tinham.

      (fiz uma merda assim nuns capítulos da minha tese por causa da porcaria das definições do indesign, coisa que obviamente só notei com os livros impressos)

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    3. Nem imaginas, Luna, estava a um quarto do terceiro e leio aquele spoiler, pá, fiquei para morrer.
      Também notei isso das mudanças de linha. Será um problema de formatação e paginação? Nunca tinha visto.

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    4. Os programas de paginação - como o InDesign - têm essa (entre imensas outras) opções, hifenizar ou não, hifenizar só em certos casos e palavras maiores que tantas sílabas, etc. Aquilo foi erro de quem fez a paginação, que nem deve ter mexido nos settings, e ficas com palavras de duas sílabas separadas entre linhas, é horrível.

      (as coisas que eu fiquei a saber por ser pobrezinha e ter tido de paginar sozinha as 232 páginas da minha tese, até já estava vesga)

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  7. De nada :) E eu sonho com um mundo de menos exploração na minha profissão. Pois, além de pagar menos em relação às tradução normais, o tradutor ainda assina um contrato de cessão de direitos autorais - tecnicamente, uma tradução é uma nova obra. Enfim, todos sairíamos ganhando com trabalhos mais bem cuidados, mas vivemos na era da produção em massa e apressada, a qualidade sempre perde.
    Vou ver se leio-o logo, então, este Abril horroroso não tem me motivado muito para leituras intensas, mas acho que consigo :)
    Um abraço, bom fim-de-semana!

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    1. O quê, fazem-vos ceder os direitos??? Isso é inacreditável! Caramba, que injusto. Além de que nem acredito que fosse uma fortuna... Eu sempre achei que os livros traduzidos eram caros por isso, porque se pagava o "investimento" na tradução e revisão, para além de direitos de autor.

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  8. Izzie, a este propósito, não sei se soubeste mas o Agualusa está entre os finalist do prémio Man Booker International Prize. Trata-se de premiar o melhor livro traduzido.
    O prémio consiste em € 65.000: metade para o autor e metade para o tradutor! Metade para o tradutor!
    Pá, até lacrimejei!
    Dulce/Porto

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    1. :D é justo! Vês, ainda há quem reconheça o valor da tradução.

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