domingo, 27 de janeiro de 2019

É (saber) lidar

I.
Foi na já longínqua década de oitenta (século passado, como dói escrever isto) que comecei, com quinze anitos, a frequentar aulas de inglês no British Council. Passei lá um total de quatro anos, embora não corridos, com preparação e exame do First Certificate (um ano) e Certificate of Proficiency (três anos). Nesta última fase não fiz os trimestres todos corridos, que calhou sobrepor-se a preparação para provas específicas e tal, que tinham (natural) prioridade. Donde, apanhei um grande rol de professores, alguns apenas um trimestre. Não me recordo de todos, obviamente, só me ficaram os mais memoráveis e, como é habitual nestas coisas da lembrança, pelas melhores ou pelas piores razões.
Certo ano calhou-me uma simpática velhota inglesa, daquelas que nos suscitaria, à primeira impressão, um ternurento ohhh, que bom, uma Miss Marple. Bom, para além da cabeleira prata, habitual twinset e saia de tweed, rematado com aqueles horrendos e mui britânicos sapatos sensatos (juro, não havia daquilo cá, de certeza os comprava lá), pouco mais. Vivia cá há trinta anos (nota: os professores do Britânico, entre actividade lectiva, falavam, por norma, muito de si), e pouco falava de português. O mínimo, penso que essencial à sobrevivência, e mesmo esse com uma pronúncia chocante. E não, não nos contou isto em jeito de contrição, mas de algum orgulho, ali a roçar a soberba, brilhozinho nos olhos, sorriso superior. E, credo, não entendia a maioria das nossas "coisinhas", enfim, hábitos tão típicos de uma civilização decerto a precisar de uma preciosa lavagem a sessenta graus que ela e seus conterrâneos aqui desterrados, na nobre missão de ensinar a língua e elevada cultura britânica, haviam abraçado como um ministério. Isto mesmo: não se coibia de partilhar connosco as suas impressões, espanto e mesmo desagrado sobre como se organizava ou funcionava esta cultura latina e suas instituições. Desde pequenas coisas do dia-a-dia, a situações mais... institucionais.
Pessoalmente, achava uma lata do caraças. Não, do caralho. Mas sou uma pessoa educada, eu e os outros, e nunca pensei ou vocalizei um não gostas volta para a tua terra. Tenho a certeza que nas suas inúmeras interacções com os patuscos nativos alguma vez lho exprimiram, ou decerto não deixaria de nos contar. E seria muito desagradável se tal sucedesse, convenhamos.
Outro que me calhou na rifa nem tinha um aspecto agradável de personagem de romance que o absolvesse. Além do mais, recordo vivamente a gravata (quase sempre a mesma!) esfiapada nas pontas, e as calças de linho que pareciam ter sido meticulosamente amarrotadas antes de vestir. Era o que se pode definir como um pompous ass, do tipo que vim a reconhecer, muitos anos mais tarde, no personagem principal de I Like it Here. Juro que foi um espanto e uma aprendizagem lidar com o criaturo, notoriamente tão contrariado por ter de se submeter a viver numa nação notoriamente tão aquém dos seus elevados padrões britânicos. Do muito que se queixava, reclamava, apontava - sempre com um sneer marcadamente sarcástico - nunca constou que o tivessem mandado para a sua terra, se esta deixava tanto a desejar.
A verdade é que, por muito desagradáveis que fossem, tinham direito à sua opinião - embora desprezassem a dos próprios locais. É encolher os ombros e lidar.

II.
Cresci num subúrbio onde não havia muita variedade racial. A maioria da população era branca, classe média nas suas nuances, desde a remediada até à confortável; ou pobre, desde a mesmo muito pobre que vivia em barracas até à pobre em habitação muito abaixo dos padrões de dignidade e decência. Mas havia, como em todo o lado, as chamadas minorias étnicas, sendo as mais prevalentes a comunidade cigana ou indiana. Mesmo branca, e inserida na classe média confortável, cresci a ver na polícia o inimigo ou, ao menos, a classe profissional a evitar, qualquer que fosse o tipo de interacção. Estamos a falar no tempo em que a simples posse de droga, mesmo um mísero charrito, ainda era crime, e o facto de este ser encontrado nas mãos de um menor não evitava um grande aborrecimento. Não sei se por excesso de zelo, para mostrar serviço, ou simplesmente por bravata, a polícia tinha por hábito ou hobby abordar adolescentes em cujas mãos ou bocas estivesse algo que pudesse ser um cigarro, ou não. Qué que 'tás a fumar. Consoante a reacção do interpelado, que normalmente não era complacente ou agradável (ei, juventude), podia dar lugar a uma mera revista ou uma visita de estudo à esquadra. Apesar da normal desfaçatez e arrogância de qualquer teen, claro que esta última hipótese era sempre de evitar. Porque toda a gente sabia o que acontecia lá dentro. Ouvi muitas histórias, contadas na primeira pessoa. Ouvi muitas histórias de rusgas a cafés ou salões de jogos, em que acabava tudo na esquadra, para um tratamento "informal" da ocorrência, ou no governo civil, para identificação - ninguém ia ao café de bairro com o BI, por norma, mas passou-se a ir.
Nunca me calhou, felizmente. Nunca saí de casa à noite, ou mesmo de dia, sem medo que me acontecesse. Lembro-me de muitas vezes estar no jardim, parque, esplanada com amigos e haver o alerta olhá bófia (os fardados era fácil, os das então chamadas brigadas de justiça já eram conhecidos) e cigarros eram apagados, trocos retirados de cima da mesa (não viesse a acusação de que se estava a jogar a dinheiro e tau, revista / esquadra). Calhou uma vez ao meu irmão, no café de bairro, felizmente ele e os amigos tinham BI. A eventualidade de rusga era uma constante.
Lembro-me afinal que calhou-me uma vez, na rua, em frente ao prédio onde vivia: apanhei o cagaço de uma vida, pensei que os tipos de mau ar que se aproximaram dois de cada lado nos iam assaltar, mas não, era só para nos identificar. Calhou que na altura eu já tivesse mais de 20 anos, curso de direito feito, estágio de advocacia a meio, e código penal e de processo penal bem sabido. Era a única sem BI, aliás, tinha saído de casa só com trocos no bolso e um maço de tabaco, afinal vivia ali ao lado. Embicaram comigo, claro. E à solicitação de nome completo e morada, eu retrucava com a redacção do artigo pertinente, perguntando porque nos estavam a identificar, e dando as hipóteses legais em que o podiam fazer. Nem isso os demoveu: insistiram, e mais queriam saber o que fazia ali, bem antes da meia noite, eu, uma cidadã livre. Fui identificada pelo meu irmão, e acedi a dar o nome dos nossos pais, enquanto eles verificavam no BI dele se estava a dizer a verdade. Enquanto isso, e porque cada vez estava mais zangada, também adiantei que podiam subir comigo ao prédio, onde se podiam apresentar aos meus pais e explicar-lhes porque identificavam a filha na rua, em frente a casa, lhes facultaria de bom grado a consulta do meu BI, e aproveitavam para me deixar tomar nota das suas identificações, como a lei permite.
O episódio acabou por ali, foram-se embora, sem uma explicação, sem me darem nota da razão porque andavam ali a identificar quem calhasse, e dando-se ao luxo de nos aconselharem a ir para casa, que não eram horas de estar na rua. Se não era para nós, para eles também não, e muito menos ali, onde não se passava nada. E, oh, se havia onde se passava. E lá, onde se passava, ou antes, nos arredores de onde se passava, era habitual chegar um ou dois carros, às vezes uma carrinha, e era tudo encostado, revistado, e levado num passeio nada recreativo. Posso dizer que com 15, 16 anos já conhecia as técnicas todas: as toalhas molhadas, as listas telefónicas, e como eram escorregadias as escadas da esquadra, onde os visitantes à força tinham o mau e constante hábito de cair.
Isto passava-se, num subúrbio "branco", e era considerado normal. Só muito mais tarde vim a conhecer a realidade de outros subúrbios, principalmente dos respectivos bairros "não brancos", onde a tal "normalidade" atingia níveis que deveriam chocar qualquer um. Não chocavam.

III.
Ao longo dos anos tive o sincero gosto de ver mudar não só a postura como a actuação da polícia. À medida que entravam novos - mesmo novos, de idade, e com outra e melhor formação - efectivos, as coisas mudavam. Entretanto saí do subúrbio e vim para Lisboa, onde havia muitas zonas problemáticas; mas a "lei da droga" e o paradigma com que se lidava com o "problema" e os toxicodependentes mudou, parecia que sim senhora, as coisas evoluíam. Nos subúrbios, e mesmo na cidade, iam desaparecendo os bairros problemáticos, as pessoas a viver em situações sub-humanas eram realojadas, enfim, ainda havia - e há - alguns focos mas nada que se compare à loucura que existia. Continuaram a existir "histórias" de incursões policiais e "excursões" de putativos prevaricadores ou quem calhava ter o azar de ali estar, mas menos. Havia e há, no entanto, um traço comum que se mantém. Uma, vá, como dizer, "preferência" nos locais e alvos pessoais target das incursões. No centro da cidade, como se sabe, há cada vez menos bairros guetizados, mas tanto aqui como nos arredores ainda existem locais onde a presença policial se faz sentir de uma forma mais musculada. Onde certas pessoas são tratadas como presumíveis suspeitos, e isso é considerado normal. Não é. Não pode ser. O facto de ser pobre, ter determinada cor de pele ou viver num determinado local não é presunção de "alguma anda a fazer". Percebo que em zonas problemáticas a polícia actue com mais nervosismo, pudera, são pessoas, têm medo. Mas o medo, se é aceitável, não pode ser o móbil ou a justificação de determinada forma de lidar com o cidadão, seja ele quem for. Um polícia actuando dominado pelo medo, e sendo esse medo determinado por preconceito, não faz um bom trabalho. Prejudica em primeiro lugar a nobreza da sua função, e, em última instância, a segurança de todos.
É preciso reconhecer isto, e trabalhar no sentido de abordar com coragem, frontalidade e perspectiva este estado de coisas. Reconhecer que ainda falta fazer muito. Ainda não tivemos um Tamir Rice, mas até quando, até quando. Não quero que aconteça.

IV.
Dando a volta, completando o círculo, retomando. Ninguém é estrangeiro na terra onde vive, e muito menos na terra onde nasceu. E muito menos é indesejado por um factor tão aleatório como a cor de pele (ou etnia, ou religião, ou país onde nasceu, ou género, ou orientação sexual, ou seja o que for).
Finalmente, seja um britânico ou um senegalês, têm direito à sua opinião, seja sobre o preço da batata ou a forma de actuação das instituições ou dos elementos que as integram. Podemos não concordar com essa opinião ou com a forma como é expressa, e oh, tantas vezes eu não concordo com tanta coisa, mas vivemos num, somos um país livre, onde todos, mas mesmo todos, têm este direito inalienável à sua opinião e sua livre expressão. Em não concordando, abre-se o debate. O que é inaceitável é a reacção via insulto, apoucamento, ameaça, e muito menos vinda de quem veste uma farda ou exerce uma função do Estado. Não conseguindo reagir de outra forma, que se calem. Lidem. Aprendam a lidar.
Que eu, pelo menos, não estou para vos ouvir, e muito menos partilhar o mesmo espaço com este tipo de gente. Aos quinze, dezasseis, e até aos vinte e muitos e trinta e poucos era aquela idealista que debatia com tudo e todos, que achava que da esgrima de ideias nasceria a luz e a evolução, mas, sinceramente, já me passou a inocência. Não resulta. Debater com um preconceituoso é como falar com uma parede, ainda que esta última hipótese seja mais agradável. Não me podem obrigar a tolerar os intolerantes, nem a dar-lhes voz, amplificação, ou os ouvir. Não finjo que não existem - erro crasso - mas não admito que ponham em causa, com a sua abordagem, ideias feitas, sinapses de betão, os mais básicos fundamentos de uma sociedade democrática e livre, segura e justa para todos, onde tenho, temos, o direito de existir. Em paz, de preferência.

quinta-feira, 10 de janeiro de 2019

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Tenho uma carga de trabalho que nem sei já a quantos estamos. Andamos em arrumações de cat-proofing, i.e., legos e traquitanas pequenas antes fechadas numa divisão agora devidamente acondicionadas em duas vitrinas - yay, espero ter sido a última vez que limpei o pó a legos, ninguém merece. Idem para livros, donde, houve muita montagem, muito limpa pó, muito acarta, mas já se vê o tampo da secretária. Preciso de encomendar os estores de rolo, mas saio antes e chego depois da loja abrir / fechar. Pondero trocar a mobília de quarto, porque preciso de uma cómoda a sério e não o brinquedo sem arrumação que lá temos. Também em apreciação a aquisição de mais estantes, mas ninguém sabe a loucura que é arranjar coisas estreitas e que caibam onde as precisamos: é para livros, não preciso de espaço à frente para bibelots, thank you very nice. Selina continua a antibiótico, à cautela, e sente-se muito melhor, o que se nota nos sprints que ela e Mad Max fazem interpolados de sonecas, sendo que ocasionalmente também temos corridas de obstáculos, sendo estes as duas almas cansadas que por acaso calha estarem a dormir. Ah, Selina brindou-nos com o seu primeiro cio, cereja no topo do bolo. Yay, a felicidade, principalmente porque não está em condições de ser operada tão cedo. Dana Scully e Fox Mulder mostram que antiguidade é posto e olham com desdém - manifestado, no caso de Scully - as diabruras dos júniores. Ainda havemos de ser uma família feliz - e sugadita. Estou cansada. Tenho um cabelo estilo esfregona, se as esfregonas tivessem raízes grisalhas. Preciso de renovar o silicone na base de duche. Pendurar quadros e fazer os respectivos furos. No fim de semana passado não tive tempo para fazer uma sopa e este estômago que agora emite ruídos não vê um vegetal desde sei lá quando. A ementa da semana tem variado entre sandes e tostas. E maçãs, que isso temos. Quero fazer um bolo. Preciso de dar um jeito ao pátio. Tenho gente a almoçar lá no sábado. Gostava muito de encetar os novelos que já comprei há mais de dois meses. Levo mais de um mês a ler um livro, porque duas páginas e desfaleço. Tenho fome. Tenho sono. Tenho frio. Não tenho paciência. Não tenho vagar. Não tenho nada de relevante para dizer ou acrescentar à sociedade. Mas gostava.