domingo, 21 de junho de 2015

Hope is the thing with feathers

Quando era miúda e me chateavam com a conversa do "então em que acreditas tu?" - ser agnóstico ou ateu é sofrer, as pessoas crêem, com toda a sua força, que toda a gente tem de acreditar em alguma coisa, pun intended - eu, enfadada com o interrogatório, e sem força para me defender do que seguiria a um "nada", acabava por responder "na humanidade". Era mais verdade do que gostaria. E continua a ser. Chame- se espírito humano, humanidade, sim, creio. E um humanista também tem os seus desafios e provas de fé, que tem. Seja uma pessoa, um percalço, um acontecimento particular, ou algo maior. Se pomos fé em algo tão difuso também é verdade que temos fé em pessoas mais concretas, e às vezes, tantas vezes, basta falhar-nos uma destas para termos o nosso momento gólgota, levantar a cabeça para o alto, e questionar porque nós abandonaram.
E depois há as coisas grandes, terrificamente grandes. Sei lá se é tpm, uma especial ou sazonal sensibilidade, mas as notícias de Charleston tocaram um nervo muito especial, aquele que faz fechar a garganta e apertar os sacos lacrimais. Podia ter acontecido numa igreja, num jantar de família, numa reunião de amigos, o que me tocou lá no fundo foi o horror de gente pacificamente reunida poder cair assim, vítima do ódio absurdo de um cabraozeco qualquer, um canalha consumido por ignorância torpe, e o mais vil desrespeito pelo próximo. O meu mal estar adensou-se enquanto a história se desenrolava: a idade do... Coiso, que nem animal se pode chamar àquilo. As circunstâncias em que se viu na posse de um instrumento de matar célere e arbitrariamente. O ideário que cultivava. A bandeira da confederação a ondular, indiferente, num edifício governamental (não fazia ideia, nem queria acreditar!). E, por fim, o aparato da detenção do indivíduo, sendo conduzido, pacificamente, pelas forças da ordem, escoltado e protegido pelos corpos dos seus membros, torso blindado por um colete à prova de bala, ou não fosse um celerado (de um "preto"?) desfazê-lo à bala. E, tão próximas, outras imagens, a de uma garota de bikini a ser atirada ao chão, manietada, algemada. Um garoto a brincar com uma pistola de brinquedo abatido como uma ameaça iminente. Policias sentados em cima de um "suspeito" que implora "I can't breathe". Tantas imagens. Uma pessoa sente um golpe, nestas alturas. Perde-se, mesmo. Não vale a pena, sente-se.
Mas depois, lê-se as palavras de um familiar de uma vítima, perante a notícia da prisão do carrasco, e são palavras de perdão. De repente, uma pessoa que não conhecemos, nunca veremos à nossa frente, uma só pessoa, de quem nem sabemos o nome, essa pessoa prova que afinal vale a pena, isto de crer nas pessoas. E essa pessoa, sem saber, faz-nos ter vontade de ultrapassar qualquer dor, que nem de longe se aproximará da sua, e voltar a ter a tal fé. Que não é só no outro, mas naquilo que representa, na sua centelha de humanidade. E é também uma fé em nós, na nossa capacidade de persistir em acreditar, por oposição ao desistir.
Se calhar é verdade, todos precisamos de acreditar em alguma coisa.

10 comentários:

  1. Um dos melhores textos de fé que já li :)

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    1. Obrigada, Mãe Sabichona. É uma (espécie de) fé, sim, mas não em seres intangíveis, omnipotentes, infalíveis. Mas é uma fé.

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  2. "na humanidade", achei lindo, principalmente sendo miúda :)
    eu também acho que sim, que precisamos de acreditar em alguma coisa. no amor? no bem? não sei muito bem o que chamar-lhe.
    (o não acreditar em deus, foi uma coisa que ficou muito clara, muito cedo)

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    1. Wallis, isto de se crescer não crente obriga a muita ginástica retórica, que somos alvos de muita gente que nos quer converter ;) A minha amiguita de pequena era religiosa, sofri muito :P
      Epá, isso do "bem", pois, acho que não há. É um conceito muito relativo. Eu cá vou levando a minha vida apelando ao imperativo categórico do Kant - mas com calma e juízo - e naquela coisa que será o superior espírito humano. sim, há muita gente que coise, mas depois há uma Malala, um Luther King, um anónimo capaz de algo grandioso, e um gajo persiste.

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  3. Não sei a quantas ando que só dei com essa notícia porque alguém postou o Jon St: https://www.youtube.com/watch?v=mjzrvRKv6Ks

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  4. Pois eu acredito em deus. Não sei porquê, não consigo explicar porquê, é uma coisa aque se sente. A tal fé que no faz acreditar em coisas que não vemos mas que temos a certeza que estão lá. Lá, mesmo não sabendo onde.
    Influência familiar? Talvez. Fui educada em ambiente cristão, não católico. Aprendi tantas a ser gente, por que não aceitar que "isto" também veio deles?
    Não vou à igreja - só quando vou "à terra" - e ouço sempre com muita atenção o que lá dizem. Para mim faz sentido. E vivo assim, com a minha fé.
    Mas curiosamente, acho que as pessoa mais grandiosas, as que mais fazem pelo próximo, pelo outro, que mais nos fazem acreditar na potencialidade que cada um de nós tem de mudar o mundo, por fé, por acreditar em si e nos outros, não são necessariamente os que acreditam em deus, mas os que acreditam na humanidade.
    Um beijo, Izzie
    Dulce/Porto

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  5. Fuschia, já vi. Brilhante, como sempre.

    Dulce, sinceramente, acho que há excelentes exemplos, tanto entre crentes como humanistas. Agora uma coisa é verdade, nunca ouvi falar de um humanista que se rebentasse pela sua "fé" :P

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  6. Por falar em acreditar na humanidade... (em que eu nem sempre acredito)
    vê a reportagem do repórter tvi de hoje. Vale muito a pena. :)

    http://www.tvi24.iol.pt/sociedade/reportagem/reporter-tvi-ate-voares

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  7. ""There's a difference between religious people and spiritual people. Religious people are afraid of going to hell; spiritual people have been there."

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  8. Não sei o que é o inferno, mas capaz de ser um sítio parecido com este em que estou agora.

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