domingo, 6 de dezembro de 2020

Certos casos de caos interno

 


Que não haja mal entendidos: fazer-se nota do surgimento ou aumento de casos de doença mental por causa da pandemia é essencial; a preocupação com a criação ou agravamento de doença mental em consequência da pandemia é séria. Mas vital, verdadeiramente fulcral, era arregaçar mangas perante o fenómeno e discutir-se a sério o combate ao problema; criar,  manter ou aumentar uma resposta estrutural, para o futuro. Prioridades, eu sei. Adiante.

Feito este disclaimer, e porque se já se vai falando do assunto, mas muito pouco, tenho pouco feedback sobre como as pessoas que já carregavam o fardo da doença mental estão a reagir, a adaptar-se (ou não). Ao que parece, e do que é noticiado, aumentou a prescrição e consumo de antidepressivos. Presumo que ansiolíticos estejam incluídos (muitas vezes são metidos no mesmo saco, porque podem funcionar como coadjuvantes daqueles seja em situações de depressão como de ansiedade). Mas não se iniciou a conversa de ei, como vai isso, pior, melho, na mesma? Pumbas, inicio eu, ainda que neste tasco semi-confinado e com uma freguesia muito reduzida.

Como não me sinto autorizada a ser porta voz de ninguém, só posso dizer que 'tou bem, obrigada. Verdade que não sou uma deprimida "a sério", isto é, sou só uma distímica ou, em linguagem corrente, padeço de uma depressão altamente funcional. Quer isto dizer que tenho a coisa controlada, quer por uma dose mínima de medicação  - mesmo mínima, no dizer do meu psi subterapêutica, mas é a boia que preciso que esteja ali para me segurar caso me sinta a deslizar - quer por psicoterapia regular há dezassete anos (iep, dezassete, e até devia ter começado antes mas havia um p€queno obstáculo, afinal fui diagnosticada há trinta anos).  Donde, depressão altamente funcional > consigo fazer uma vida praticamente normal, manter um emprego altamente stressante e exigente com bons resultados de desempenho, conhecendo-me ou lidando comigo ocasionalmente até me acham uma pessoa normal (lol), ainda que um bocado bicho do mato, por aí fora. No panorama geral, sou uma privilegiada; não fui sempre, a coisa estava substancialmente mais negra quando recorri a um psi, mas isso agora não é o que interessa. O que queria dizer é que a pandemia não agravou o meu estado de saúde mental. Na-di-nha. Até me atrevo a dizer que melhorou (considerando, também, que concomitante à pandemia me vi num processo de luto). O medo de ficar ou estar doente, com uma doença física, ainda que nova e com contornos desconhecidos, nunca me aconteceu antes, nem surgiu agora. Acho que a constante angústia e ansiedade em que me habituei a viver relegou esse receio, tão humano e compreensível, para um segundo plano. Não tomou a dianteira agora. Claro que não sou tolinha ou destemida, tomo (todas) as precauções que a ciência aconselha, nem as discuto (não tenho habilitações para tanto). Depois, e falando nas tais precauções, o confinamento, afastamento social, e constante preocupação de desinfectar mãos, usar mascara, etc, não me cusam por aí além - vide "bicho-de-matisse" já referida. Acresce que o desacelerar da vida "normal" - que nunca senti como muito "normal", siga - melhorou substancialmente a minha qualidade de vida. Verdade seja dita, o trabalho continua pesado, até porque se teve de ser redimensionado (válido para quem tem de lidar com pessoas), temos de lidar com uma série de circunstâncias que anteriormente nem se colocavam, cautelas acrescidas, adaptação de métodos para manter o serviço e a resposta a correr satisfatoriamente. Mesmo de portas quase fechadas, continuei a trabalhar comó caraças, mas com outro nível de pressão. E, portas abertas, idem aspas. De repente, no silêncio que cobriu o mundo, no deserto que invadiu as ruas, tomei consciência que antigo "normal" era brutalmente anormal, absurdo, desumano. Trabalho de forma diferente, pus pé no travão, conciencializei-me que aquilo antes não era vida, era uma corrida desenfreada e louca. E já não é possível e, no meu caso, felizmente. Por fim, o sentimento de paz. A consciência generalizada de que não dominamos nada, não controlamos o que nos rodeia, não somos donos do tempo, do modo, do existir, cria-me um enorme sentimento de paz. Curioso, porque penso que é exactamente esta incerteza existencial que criou, em muitos, as brechas que agravam a sua saúde mental. Não comigo. Se calhar porque desde muito cedo interiorizei que nao domino nada, não controlo o que me rodeia, não sou dona do tempo, do modo, do existir. Não deixa de ser irónico que o trending de angústia existencial associada à pandemia tenha em mim o efeito contrário ao sentido por os demais, ou ao menos tantos: a normalização do meu habitual estado interior. Sempre vivi assim; o mundo estar agora "assim" funcionou como uma especie de nivelamento. Finalmente vivo a na normalidade. A minha normalidade passou a normalidade geral.  

Ainda que ninguém pergunte, não, não me faz feliz ver mais gente a baixar aos infernos da eterna ou constante angústia. Pelo contrário. Não sou daquelas que rejubile pela desgraça alheia, tenha sentimentos de "toma, agora já sabes como é", nem me sinto superior ou especial por estar a conseguir lidar (nadinha, até me sinto surpreendida, e tenho passado algum tempo a matutar no assunto, como se depreende do lençol que aqui vai). Tenho é um andamento do caraças, um treino que faz favor - e pela primeira vez na minha vida isto revela-se como uma vantagem, nunca pensei. 

Daí achar que é tão importante uma discussão séria sobre o assunto, e a criação de mecanismos de resposta: para que quem agora se sinta assoberbado, sem ar ou chão, não se perca. Para que a assistência ou tratamento sejam fáceis e assessíveis. Para que quem sinta necessidade destas não sofra ainda mais pelo estigma de precisar. Sim, eu cá estou benzinho, mas tempos houve que não estava mesmo nada e só a possibilidade de recorrer a assistência privada me safou. Nunca me esqueço ou esquecerei disto (há trinta anos, seis meses de espera para um consulta não de especialidade mas de traiagem, no público; não creio que tenha melhorado). Já não acredito - confesso que quis acreditar, por um breve momento - que esta situação nos poderia tornar melhores pessoas, individual e socialmente; mas quero muito, muito, mesmo muito que sirva para retirar algumas conclusões que, para mim, são evidentíssimas. Uma delas é de que o investimento público no sistema nacional de saúde é A prioridade, e de que todos os aflitos merecem ser acolhidos, cuidados e tratados. Todos, todos, todos. Balhelas, desiquilibrados, fraquinhos de cabeça (ironia, hein), incluídos.      

7 comentários:

  1. Costumo dizer que a minha psi me salvou a vida, porque me ensinou a cagar para as cenas que dantes me deixavam loucas. Isso e os medicamentos. Sobrevivi à pandemia, mas não sobrevivi a uma outra cena que me aconteceu. Pumba, bota droga. Claro que fui ao privado, para me despachar. Tens toda a razão, mas infelizmente ninguém se rala connosco, os malucos.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Sãozinha, a terapia e os medicamentos resultam e salvam vidas <3 Ainda bem que recorreste a ajuda e estás melhor. Isto das deprês é uma chatice, mas é possível melhorar, ou mesmo ultrapassar, haja meios. No meu caso também houve um evento que desencadeou o pior, apesar de sempre ter sido uma miúda dada a melancolias e ansiedade.

      Eliminar
  2. Outra coisa que espero que tenha aberto os olhos a muita gente, e' como o investimento na saude e' feito, e no caso de Portugal ha muita coisa a mudar. Lembro ha uns anos de um tal relatorio de uma comissao de etica que mostrava como Portugal nao tinha dinheiro para pagar os mais caros tratamentos de cancro, que apenas prolongam a vida 3 ou 4 meses sem qualidade nenhuma. E eu dizer de como concordava com tal relatorio, que ha outras areas de grande prioridade do SNS que melhoram em muito a quantidade e qualidade de vida dos pacientes, mas como nao sao questoes de vida ou morte no momento, varrem-se para debaixo do tapete. E fui altamente atacada na altura por isso, ate pessoalmente, "falas porque nao e' a tua mae que esta com cancro" e coisas assim, mas sao familiares meus que estao com diabetes, problemas coronarios, de rins, de figado, que precisam de operacoes nao-urgentes que lhes melhorem a qualidade de vida, e esperam anos a fio por algo que nao vem. E no todo, como sociedade, os valores que tem regido Portugal sao os de obter meia duzia de coisas altamente flashy e caras, para "ingles ver", maquinas que fazem PING e comprimidos de marca da moda para meia duzia, mas depois nas coisas do dia a dia, que realmente elevam a qualidade de vida de todos, e' aos remedeios, alguns tratados em corredores, muitos sem cortinas ou qualquer dignidade humana.

    Acho que o COVID veio levantar muitos destes tapetes e mostrar as decadas de sujidade que encobriam. De como o pessoal esta mal pago e estourado, como lhes falta treino e pagamento decente, de como nem tudo e' cancro nem drogas caras - as vezes as mais baratas e com cuidados basicos melhoram em muito os resultados para todos. E espero que todos tenhamos aprendido com isto, e que nao se volte a varrer a saude para debaixo do tapete, quando se discutirem os orcamentos de Estado futuros, altamente caoticos com um pais na grande crise que ai vira.

    Desculpa-me desviar o assunto, mas cada um fala do que sabe! ehehe. Sobre o outro assunto, sim, eu sou daquelas que de vez em quando desiquilibra, e com um recem-nascido e um homem com pouca resistencia 'frustracao, este lock-down e estes tempos tem sido psicologicamente os piores da minha vida, depois da morte do meu pai. Os medicos sabem receitam medicamentos, mas terapia - era bom... Agora receitam grupos de Facebook. I kid you not.

    AEnima

    ResponderEliminar
  3. Tambem fui injusta no comentario acima. Nao e so Portugal que tem que mudar. A verdade e' que o UK se rege mais por principios de custo-efectividade, investem mais em treino do pessoal e protocolos para evitar falhas, etc. Mas tambem e' levado pelos media e estabeleceu por exemplo o Cancer Drugs Fund, para pagar esses tratamentos muito caros e nao custo-effectivos a alguns. E nos vimos como o orcamento do CDF se fosse distribuido pelo SNS oferecia mais 780 anos extra de qualidade de vida 'a populacao por ano (para teres uma ideia, isso ofereceria aos outros utentes o quadruplo do beneficio do que oference aos doentes de cancro que beneficiam). Acho que o COVID descobriu muitas carecas a todos os SNS, e aos paises sem SNS tambem. Uns tem que limpar mais que outros, e Portugal e' daqueles que precisa de suar as estopinhas e fazer uma limpeza de geral, daquelas em que ate se mudam a mobilia do lugar.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. AEnima, a saúde mental é o parente pobre dos sistemas de saúde. São males (quase) invisíveis, e aparentemente sem consequências. O chato é que quando se começa a estudar descobre-se que são causa de elevado absentismo e mesmo incapacidades longas, ou seja, têm um real impacto social e económico. Isto nem falando no mais importante, e tantas vezes ignorado, que é o bem estar individual. Uma pessoa doente é uma pessoa doente, ponto. Todo o sofrimento merece tratamento.

      O nosso SNS precisa de muita, muita mudança. Além do desinvestimento, há que reconhecer que se trata de um serviço que não é suposto ser rentável, mas evita perdas económicas e sociais se funcionar bem. Precisa de bons profissionais, bem pagos, com horários de trabalho humanos. Precisa de aferir prioridades, e articular-se melhor com outros sectores, como a segurança social. Há muitos casos sociais a ocupar camas e consultas. Pessoas que precisavam de acompanhamento domiciliário e não internamento, pessoas que precisam de psicólogo ou terapia regular, e não entupirem consultas de medicina geral e familiar com queixas que geram a prescrição de exames desnecessários e medicamentos que muitas vezes fazem mais mal que bem (com 16 anos e já com uma ansiedade quase incontrlável, prescreveram-me calmantes, com um efeito hilariante: andava drogadíssima, e tive de deixar de tomar. há coisas que só um psiquiatra deveria prescrever).

      Ainda me lembro da nossa "discussão" sobre esses medicamentos caríssimos e que não tinham um resultado visível em termos de aumento de vida ou qualidade de vida, e fizeste-me mudar de ideias :) lá está, ouvir quem sabe ajuda muito

      Eliminar
    2. Nos nao discutimos. Eu detesto discutir, mas adoro debater assuntos com pessoas interessantes e informadas que tem outros pontos de vista. Isso para Ingles e' discutir, o que me deixa bastante triste, admito. Aqui ninguem choca de frente com ninguem e nao percebem que debater pontos de vista opostos nao significa que temos algo pessoal contra a pessoa, ou que estamos a discutir com ela, e' simplesmente um exercicio intelectual interessante que pode levar a que um lado, ou os dois, mude de ideias e evolua com o processo. Na vida academica ainda vemos alguma discussao construtiva. Na vida pessoal, e' horrivel. Toda a parte da familia inglesa me vem como o diabo porque nao entendem que la porque eu discordo fundamentalmente com a grande maioria das ideias politicas ou sociais deles, depois da conversa, somos amigos 'a mesma. Para mim... para eles nao, sou alvo a abater. Preocupa-me, mas para te ser sincesara, ja me tirou mais o sono do que tira agora.

      Eliminar
    3. Eu adoro um bom debate - Chamo-lhe discussão, mas neste sentido: discussões daquelas a sério também detesto - mas há muita gente que leva logo para o campo pessoal, sim. Caramba, conheço imensas pessoas com ideias e conhecimentos diferentes dos meus, é a falar que nos entendemos e aprendemos. E se não conseguimos chegar a um consenso, amigos como dantes, era o que faltava levar a peito que não pensem todos como eu :D

      Eliminar