domingo, 29 de março de 2020

A princípio não é simples

Nas suas lições de bricolage, de que eu era diligente aprendiz, o meu pai sublinhava sempre as três principais regras: 1) Ler as instruções / fazer um plano; 2) Segurança, sempre cuidado com a segurança; 3) O material tem sempre razão. Ou seja, 1) não começar nada sem saber muito bem como funcionam ferramentas e materiais, e sem ter delineado os passos necessários para alcançar o resultado pretendido; 2) deriva da primeira, porque quem sabe como fincionam materiais e ferramentas já tem meia segurança assegurada, mas de qualquer maneira é fixe uns cuidaditos extra como desligar o berbequim da corrente quando se muda a broca, já nem falando de desliguar disjuntor ou quadro quando se mexe em cenas eléctricas, enfim, é planear; 3) se tudo correr mal, a culpa é nossa, e falhou alguma coisa no primeiro passo. Perante um cenário destes impõe-se um valente palavrão, e depois,  como dizem os militares, reagrupar. Olhar para o bonito serviço que fizémos, voltar ao passo um, pensar, adaptar ou fazer um novo plano, minimizar o estrago.

Nunca falha. Eu sei, e posso afirmá-lo convictamente, porque já falhei imensas vezes. Pode parecer contraditório, mas é mesmo assim: quando tudo falha, se desmorona, ou nos rebenta na cara, é quando percebemos que aquelas regras são essenciais, que descuramos alguma delas em algum ponto, e que não voltaremos a fazer esse erro. Desde que, claro, se tenha assumido o passo da resolução que já adiantei: dado que o material tem sempre razão (dogma, não discutam), fomos nós que fizémos asneira, portanto, ou se tem uma reacção infantil de partir tudo à biqueirada, ou se é uma pessoa crescidinha e se analisa todo o processo para ver o que (nos) falhou e como podemos resolver a cagada sem grande prejuízo.

Isto tudo para dizer que, depois de uma semana muito difícil em que cu alapado no sofá e um pucatchinho de trabalho foi a definição do meu diário de isolamento, comecei a reagir, fui-me ao berbequim, caixa de parafusos e buchas, martelos, alicates, fita métrica e régua de nível (o meu nível laser não tem pilha, e não posso sair de casa à procura de uma. mas já me faltou mais, que o nível é também detector de canos e fios eléctricos, e preciso dele para fazer ali uns furos que me faltam numa parede onde não tenho a certeza a que altura passam os fios, tenho uma ideia, mas regra nº1 e nº2).
Já fiz cenas que tinha na to do list desde circa 2012. Umas correram muito bem, dei-me muitas palmadinhas nas costas. Outra correu bem mas deu luta, mais palmadinhas nas costas. Uma correu mal e, depois de mais que um palavrão, não demorei a perceber onde é que tinha feito asneira, já tenho novo plano que vou testar antes (foi o meu erro, devia ter testado), e já tenho remédio para os dois furos inúteis que vão deixar de o ser. 

E melhor de tudo, senti-me bem. Muito bem. Bricolar é uma das minhas tarefas preferidas, ali quase a par e passo do lego de adultos que é montar móveis. É giro também constatar que tenho alguns dos tiques do meu pai: o de falar sozinha para um buraco acabado de fazer gabando-lhe a perfeição e redondez; virar-me para o Max, que me observa, e explicar-lhe o totoloto que é furar paredes numa casa com quase 90 anos, aqui calhou areia, com uma broca de quatro fez-se um furo de cinco (o pretendido, ver regra 1 e 3) e ainda sobrou (dica: palitos); quando alguma coisa corre extremamente bem ou extremamente mal, dizer um palavrão baixinho e, acto contínuo, virar-me para o assistentes (que antes era eu, agora, pelos vistos, é o Max) e dizer "tu não ouviste nada, hã".

Isto vai passar.
Isto vai correr bem.

[o seu corpo desistiu no dia 13 deste mês, e o meu pai é agora memória. e ela está em todo o lado, em inúmeros objetos mas também paredes que ainda pintou, quadros, suportes de cortinados, e candeeiros que pendurou. são muitas e boas memórias, e as melhores são as não corporizadas. estão sempre comigo e alegram-me, embora às vezes com lágrimas.]

24 comentários:

  1. oh, Izzie... nem sei o que dizer. Um abraço.

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    1. Nem eu, Wallis, foi um ano e meio muito duro, o desfecho seria previsível mas ninguém está verdadeiramente preparado. Obrigada!

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  2. Também foi assim que aprendi que as memórias são um enorme conforto. Temos a sorte, tu com o teu pai, eu com o meu, de ser filhas de homens que só nos deixaram boas memórias. Farão sempre muita falta. Um enorme beijinho para ti :)

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    1. Mac, são o único conforto, e sim, temos essa sorte. Obrigada e um grande beijinho

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  3. Abracinho apertado de uma leitora já muito antiga. Madalena

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  4. Oh, Izzie... Sem palavras mas aqui humildemente te deixo um grande, grande, grande e apertado abraço. Lamento sinceramente a tua perda. Um grande beijinho.

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  5. Um brinde às boas memórias dos bons pais.

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  6. Os meus sentimentos, Izzie. Que bonito é ver as memórias que guardas.

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  7. Venho só deixar um grande beijinho <3

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  8. Esta custa a comentar. Volto quando tiver mais cabeça para escrever
    Xxx

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  9. Um beijo e abraço apertado virtuais :(

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  10. Andei arredada destas lides, mas não queria deixar de te dar um beijinho. Custa e vai custar ainda mto tempo (a minha mãe já vai fazer 3 anos daqui a uns meses, e ainda esta quarentena me vieram lágrimas aos olhos por isso) mas faz tudo parte e, à sua maneira, é saudável q ainda seja.
    Abraço

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    1. Obrigada, Me. Vai atenuando, mas custa e custará durante muito tempo. Um beijinho também para ti

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