terça-feira, 29 de maio de 2018

E ainda diria mesmo mais

A proposta de legalização da eutanásia, na minha opinião, apenas peca por defeito.
Sim senhora, é preciso começar por algum lado e, ainda assim, mesmo sendo claro e cristalino que apenas se fala de manifestação de vontade pessoal, por pessoa capaz de a exprimir, portanto não afectada de doença ou incapacidade mental, por exemplo, já há quem augure um holocausto. Como se fosse fácil saltar por cima da tal cena da vontade livremente expressa.

E é precisamente aí que peca por defeito, digo eu. Para além de só se querer permitir acesso à morte assistida a quem esteja afectado de doença irreversível e terminal (pá, terminal é a vida) e em sofrimento considerável (hum, um bocadinho vago, já lá vou), a pessoa tem de estar, no momento em que se verificam tais condições , capaz de exprimir, reiterada e seriamente, a vontade de morrer. Não, não quero substituir esta vontade e liberdade pessoal por vontade alheia, mal fora. Mas e uma vontade séria e livremente formulada, em momento anterior a tal estado terminal, irreversível, e por antecipação de um sofrimento que, para a pessoa em causa, seja incomportável imaginar?

Exemplificando: é-me intolerável imaginar que, um dia, o diabo seja surdo e essa treta toda, caso esteja afectada de demência irreversível ou outra condição semelhante, confinada a um invólucro até capaz de funcionar automaticamente mas sem qualquer expectativa de recuperar aquilo que me faz ser eu, a consciência, a lucidez, me seja imposto continuar a definhar até morrer. Que continue a, meramente, existir; sem "miolo", sem o que me faz pessoa, a vegetar, a ocupar espaço, a gastar ar, a dar trabalho, a fazer sofrer quem ainda me sobreviva e de mim tenha de cuidar. Esta possibilidade, esta antecipação, causa-me imenso sofrimento. E gostava que me fosse permitido deixar expressa, livre, voluntária e previamente, a vontade de que, nessa situação, me despachem. Tal como gostava que me permitissem exprimir tal vontade - e vê-la respeitada - se e quando, ainda mantendo a lucidez e capacidade para o exprimir, o meu corpo fosse apenas um fardo, a idade e a teimosia de existir apenas uma moratória. Nem num nem no outro caso existiria ou a tal faculdade de dispor, ou a doença terminal irreversível, ou o sofrimento intenso. Um demente, atingido determinado estádio, não sofre; aliviado da consciência de si, existe só como um amontoado de células em piloto-automático. Uma pessoa muito idosa, com as maleitas naturais que vão anunciando a partida, não está afectada de doença terminal e irreversível; apenas é vítima, sim, da irreversibilidade do tempo e falência natural da máquina. E esse sofrimento, esse arrastar, não é valorado porquê?

Isto é o que gostaria para mim. De poder fazer um testamento vital em condições, em que previsse todas as situações possíveis. Que me fosse permitido esse supremo exercício de vontade e liberdade que é dizer que, caso esteja em determinada situação, e impedida de manifestar vontade, ela é esta, a de que me encurtem a existência então meramente simbólica. Que caso mantenha as faculdades mentais, não esteja no tal profundo sofrimento - que insistem em fazer equivaler a dor física! - mas entenda encontrar-se irremediavelmente comprometida a minha qualidade de vida, a minha razão de viver, me seja facultado escolher partir, simplesmente. De forma digna, o menos traumática possível, e portanto com ajuda, claro.

Talvez um dia lá se chegue, e eu gostava que ainda fosse durante o meu período de vida e na posse das minhas faculdades mentais. Aliviava-me imenso, digo mesmo, confortava-me muitíssimo. Não vejo qualquer qualidade redentora no sofrimento, qualquer sentido no prolongar de uma vida que já não o é. E a mim, só a mim deveria caber a decisão sobre o quando. E o porquê, bom, esse também seria meu (e não abdico).

18 comentários:

  1. Penso que foi isso que fez o Terry P., não foi?

    De certa forma, acho que as regras também servem para proteger quem prestará a morte assistida e impedir acusações de homicídio.

    Agora, é verdade que se assume que quem dispõe de possibilidades físicas e ainda tem capacidades mentais se suicidará. A questão que pões, se percebi, é a possibilidade de o suicídio, em certos casos, ser encarado como eutanásia (o que já aconteceu na Bélgica). Em certos casos, isso poderia ajudar bastante a família a lidar com a situação (e eliminaria aquela trampa do seguro de vida não ser recebido em caso de suicídio).

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    1. Filipa, esse Terry P. foi aquele professor de 104 anos que foi à Suíça tratar do assunto?

      Bom, a eutanásia é terminar o sofrimento, é, no fundo, um homicídio a pedido. Também há a figura do auxílio ao suicídio, mas as fronteiras esbatem-se muito. Uma pessoa que esteja acamada, sem qualidade de vida mas sem sofrimento físico, não terá autonomia para se suicidar, mas também não reuniria os pressupostos para pedir eutanásia. Mas um doente oncológico poderá ter autonomia, mas reunir os pressupostos. É complicado, admito, mas gostava muito que o suicídio assistido pudesse ser admitido. É que é muito diferente ajudar alguém a morrer, com dignidade e sem sofrimento inútil, ou "forçar" alguém a suicidar-se, por métodos, hum, que podem causar sofrimento desnecessário.

      A problemática dos seguros, bom, isso é outra história.

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  2. O desastre será se, em se retirando esses requerimentos da pessoa estar em sofrimento e com doença terminal, não começará a existir uma pressão da sociedade em geral e de certas famílias em particular para idosos em situação de dependência serem compelidos a tomarem a decisão de recorrerem à eutanásia a fim de pararem de ser um fardo. Na minha opinião, é mesmo provável que essa seja uma consequência do que se pretende uma lei que à primeira vista apenas respeita a liberdade individual. É que a liberdade de escolha tem muito que se lhe diga (veja-se debates à volta da prostituição, doações de órgãos em vida, aluguer de barrigas, etc). Onde se traça então a linha do que é permitido? Qualquer pessoa pode escolher pedir para morrer?

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    1. D.S., não posso admitir, por princípio, que terceiros tenham poderes para dispor da vida de outros. Se o velhinho não deixou uma manifestação de vontade inequívoca e válida, ninguém se pode substituir, não se pode admitir.
      Agora quanto aos limites, pois. É complicado. Pessoalmente custa-me admitir aquilo que na Bélgica (acho) já se fez, que admitiram como motivo para eutanásia (aqui chamaria suicídio assistido, adiante) uma depressão crónica que causava considerável sofrimento à paciente. Nestes casos custa-me, confesso. Daí que também cão consiga dizer que sou a favor de qualquer pessoa em qualquer circunstância pedir para morrer.
      Se calhar estou um bocadinho toldada por um caso próximo, mas estivesse eu acamada e só à espera de morrer, gostaria que me cortassem algumas etapas...

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    1. Goldfish, lamento desapontar, mas quando escrevi este post ainda nem tinha lido o teu (e outros) comentários. O blogger pregou-me uma partida e deixou de me notificar dos comentários por aprovar, hoje é que me deu a curiosidade e vim ver. Caneco, nem as minhas respostas estão a ir para o mail :/
      (já cá volto)

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  4. Tão isto, Izzie <3
    (Sinceramente, tenho fé de que caminhamos para aí. Talvez devagar, nesses termos, mas caminhamos. As demências podem tornar-se um pouco mais difíceis de operacionalizar, até porque há mais plasticidade num cérebro a definhar do que num corpo, mas bolas, nos últimos dois meses fiz avaliações neuropsicológicas a duas pessoas com marcadores genéticos de demência e com alguns sinais de possível estado pré-clínico de doença, e o medo, o medo nelas... o medo por terem família assim e saberem como provavelmente vão ficar... o medo se é o início do fim... :/ um acto de generosidade última, este de aceitarmos que deve poder ser o outro a decidir das condições da sua própria vida - e do que fazer quando essa vida só acrescenta dias aos dias...)

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    1. Red, a demência assusta-me tanto, tanto! O demente em último estádio não sofre, claro, desde que o alimentem, limpem, e cuidem do básico. Mas eu queria lá ficar naquele limbo em que já não seria pessoa, só uma coisa. Aterroriza-me. Queria muito poder fazer um testamento vital em que deixasse isso "tratado".

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    1. Custa estar de acordo, pois custa. antes não fosse necessário, e houvesse um botão que se desligasse automaticamente.

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  6. "é-me intolerável imaginar que, um dia, o diabo seja surdo e essa treta toda, caso esteja afectada de demência irreversível ou outra condição semelhante, confinada a um invólucro até capaz de funcionar automaticamente mas sem qualquer expectativa de recuperar aquilo que me faz ser eu, a consciência, a lucidez, me seja imposto continuar a definhar até morrer."

    É isto, sem tirar nem pôr. Mas sim, tem que se começar por algum lado.
    Infelizmente, todo este processo foi tratado de forma, no mínimo, displicente. Estou tão zangada que nem te consigo dizer.


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    1. P., fiquei muito zangada com a forma como se tratou este assunto, com uma ligeireza e baixeza de argumentos, pfff.
      Olha, quando a nossa Amélie adoeceu, um dia perguntei à veterinária se ela estava a sofrer, e disse que não a queria ver a sofrer. Custou-nos horrores, mas andávamos os dois tão consumidos com essa possibilidade, e de a estarmos a manter viva por estupidez ou egoísmo. Ainda hoje me pergunto se não deveríamos ter tido a caridade de a eutanasiar, ela sofria muito de estar numa jaula no hospital veterinário, via-se que queria a sua casinha. Mas nunca nos disseram que era irreversível, deram-nos a esperança de estabilização, enfim, fizemos o melhor com o que sabíamos. Sei que vais perceber isto: eu não pediria menos para mim.

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  7. Por acaso achava que previa isso mesmo, que eu, à imagem do que se faz para a doação de órgãos, pudesse em vida capaz (plenas faculdades), deixar esses termos escritos.
    De outra forma nem faz para mim sentido.

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    1. Me, também gostaria que funcionasse assim. Ficava tudo tratadinho, clarinho como água.
      A única razão para ainda não ter feito um testamento vital é não haver eutanásia: não quero que me tirem o suporte de vida e me deixem ali a arfar, como um peixe fora de água, até morrer. Não quero recusar à partida a reanimação, mas gostava que, se após reanimação estivesse um vegetal, me despachassem. Enfim, custa muito dar qualquer coisinha para uma pessoa se ir em paz?

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    2. Pois, é por aí é.
      De que sirvo eu a alguém, em estado vegetativo...

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    3. Pode parecer muito cru e frio pensar nisso, mas que penso, penso.

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  8. Acabei de ler que o aborto é uma decisão sobre a vida de outrém. Alguém me ajude.

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    1. Filipa, eu li uma coisa semelhante: que se no aborto é um terceiro que decide sobre a vida de outrem, então deviam permitir que uma pessoa decida sobre a sua própria vida. até me deu uma tontura. Pá, um embrião não é uma pessoa. E nem um bebé teria autonomia para tomar decisões, quanto mais um embrião. Jasus, é mesmo vontade de não pensar.

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