segunda-feira, 9 de maio de 2016

I must make amends

Querido Estado:

Dirijo-te [posso tratar-te por tu, verdade?, afinal não nos conhecemos de ontem, e nada da minha vida te escapa, tudo o que tenho vem e volta a ti, sinto-nos assim como que ser e sombra; deixa, por favor, ter esta breve ilusão de intimidade] estas breves e esperançosas palavras, no desejo e expectativa que se corrija, doravante, grave injustiça de que, como cidadã contribuinte, sujeito de direitos, sou alvo. Sem mais delongas, passo já ao(s) assunto(s), a saber, que é(são) o(s) seguinte(s):

- Desejo uma casa maior. Com jardim. Pode ser para recuperar, sempre fica ao meu gosto. Portanto, reformulando: desejo uma casa maior, com jardim, garagem (já me esquecia!) e uma verbazinha para recuperação/qualificação. Não tenho ainda propostas, mas sou pessoa modesta: qualquer meio milhão servirá. Vá, seiscentos mil, já sabemos que as obras tendem a derrapar. Visto que não sou possuidora de tal quantia, agradecia o obséquio. Afinal tenho o direito (constitucionalmente garantido!, ó o art. 65º nº1!) à habitação, ou não? E eu é que sei, eu é que estou em condições de determinar o que é isso de "uma habitação de dimensão adequada, em condições de higiene e conforto e que preserve a intimidade pessoal." Entendidos, portanto.

- Falando em habitação, também me contratavas um sistema de segurança. É um direito que eu tenho (art. 27º nº1, outra vez da Constituição), o direito à segurança. Sim, eu sei que há forças de segurança públicas; mas a menos que me prometas um polícia à porta, em permanência, não vejo como mo possas assegurar com a mesma eficiência que uma empresa privada me garante. Ficamos assim, portanto: alarmes de intrusão, videovigilância, ligação à central. A mensalidade não é assim tão alta, pá. Afinal para que servem os meus impostos?

- Já agora: quero um mini. O que me dava imenso jeito era aquele que aparenta uma carrinha, o clubman. Muito giro, jeitoso, arrumado. Em verde garrafa. Ou castanho chocolate. Depois combinamos. Dois era o ideal: um mais prático, o tipo carrinha, e outro para as voltas mais doudas, em azul real, com o union jack no tejadilho. Como? Já tenho um utilitário? E, ademais, passe social? Ó senhor, então e os meus direitos? Está na constituição, o de deslocação (art. 44º nº1). E, já que tenho esse direito, quero escolher. O dito meio. De deslocação. Uma coisa com estilo, ou não mereço? Mereço, pois.

- Não querendo agourar, mas já que não vou para nova e prevenindo: em me acontecendo uma necessidade (bate na madeira!) preferia um daqueles hospitais privados com quartos individuais. Nem em estando saudável gosto de partilhar espaço de dormida com estranhos, quanto mais. Além de que diz que têm escolha entre dois ou mais pratos, nas refeições, e eu não posso comer de tudo. E se é um direito que eu tenho (art. 64º nº1), e se há estabelecimentos que garantem uma assistência mais confortavelzinha que os teus, prefiro escolher. E, caramba, acho que tenho o direito de escolher. Ora essa.

- Finalizando, que eu sou uma pessoa que nem pede muito, mas pede em bom, queria um smartphone novo, que o meu já não sei se aguenta as novas actualizações que por aí virão. Prevenindo, portanto, queria um, a breve trecho, tipo, já. Não precisa de ser uma coisa muito fina, nem muito cara, basta que tenha acesso à net e uai-fai, de molde a me garantir o meu direito ao acesso à informação (art. 37º), e à expressão, que blogar também é isso. Já agora, também a netflix, e tomavas conta da minha continha de tv cabo (pacote de filmes incluídos), a ver se me garantes o meu (efectivo!) direito à cultura (art. 73º nº1). Uma vez que na érre-tê-pê não passa nada de jeito, e eu ainda tenho o direito a escolher o que melhor serve as minhas (aliás elevadas) exigências culturais, não fazes mais nada que a tua obrigação.

E pronto, era só. Claro que fica tudo em meu nome, afinal tenho o direito à propriedade privada, (art. 62º nº1). E o Estado quer-se uma pessoa de bem, que não viola direitos, muito menos os fundados em legítimas expectativas constitucionalmente consagradas. Em falando de direitos, mormente os adquiridos, repõe também aí o salário e horário com base no qual fui contratada. Mas só depois de me assegurares o resto, que o importante e essencial é o importante e essencial, e não quero ser responsável por um súbito descalabro das contas públicas.

Subscrevo-me, com toda a estima e consideração, e melhores votos de continuação,
Izzie
(blogger. pessoa. mulher. cidadã. contribuinte.)


[disclaimer: todas as normas citadas neste post partem de uma pessoalíssima e mui conveniente interpretação do texto Constitucional pela subscritora.]

21 comentários:

  1. :D Genial!
    Quando a polémica estalou e li pela primeira vez uma pessoa a defender "a escola do meu filho escolho eu", comecei a rir. Depois vi que era a sério o.O

    E agora vou ali almoçar a um restaurante caro e pago só o preço de diária em tasca, o estado que pague o resto que eu tenho direito à alimentação.

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    1. De facto, não percebo porque o dinheiro que eu tenho (ou não tenho) há-de ser um obstáculo para ter a vida que quero, ora. Caramba, e o direito à qualidade de vida?

      E esqueci-me do direito à alimentação, bolas. Logo eu, que tenho papilas que adoram chocolate do bom e ali aos €4 ou mais por tablete.
      (ainda estou a pensar em fundamentação jurídica para passar a vestir na Avenida da Liberdade)

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    2. Podes sempre argumentar um direito ao agasalho ou coisa que o valha (integridade física, no fundo!). E que as malhas da Chanel dão um agasalho muito mais eficaz do que as malhas da Primark, e que as malhas da Chanel & cia são as únicas que não te fazem comichões e portanto são essenciais à preservação da tua integridade física :DDDD

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    3. D.S., estás contratada como assessora para fundamentação jurídica! Já! E pensa nisto: um cartão de cidadão gold, que dá acesso universal e gratuito a serviços top financiados pelo Estado. É que há pessoas com gostos e necessidades, vá, acima da média.

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  2. isto era boa resposta ao artigo azedo do Diogo Quintela.

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    1. Ah, não li. Outro dia apanhei pais indignados no telejornal e apanhei um camadão de nervos. Uma delas queixava-se que o estado tinha gasto num parque escolar megalómano, e agora queria fechar colégios. Bu-hu.

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    2. Lol. Deve ser uma embirração pessoal que o Estado tem com essa senhora, mas só com ela :P Eu percebo que uma mudança de escola seja uma coisa chata de orientar, para os miúdos, para os pais, para as expectativas envolvidas, etc. Não sei se poderia haver um meio termo, haver escolas públicas com pedagogias diferentes.

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    3. Esses pais era dar-lhe com um pau pelas costas.
      Ai querem ter os filhinhos num colégio, mto bem, paguem car&#$@!! É que eu tb pago pelo infantário privado do miúdo (e não é pouco), nomeadamente pq o estado nem sequer tem oferta publica até aos 3 anos!!

      Era um das caldas bem grande para essa gente.
      Vou já destilar veneno para outro lado...lamento ;)

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    4. A escola pública precisa muito de ser pensada, mesmo muito. Precisa de mais actividades para a criançada ter horários compatíveis com aquela coisa que os pais fazem (trabalhar, não é)? Precisa de motivar os putos, dar-lhes uma formação cultural e artística, para além de cívica. Mas isso não se faz desviando verbas, né. Quem quer bolos, paga-os.

      Disclaimer: os meus sobrinhos estão num colégio (dedos na boca) muita beto, com farda e tudo (dedos na boca), onde nunca enfiaria um filho meu. Acho que faria tudo, mas tudo para um filho andar na pública. Até mudar-me para Telheiras (dedos na boca) ou a Expo (dedos na boca), onde diz que são boas. Sou um bocado jacobina, nisto da defesa do ensino público. E até percebo porque muitos optam pelo privado, a começar pelos horários. Mas paga-se. Que remédio.

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    5. Ontem, o Marques Mendes (captain obvious, e que entretanto passou para mestre do mal) dizia que os pais têm direito à escolha. E deu como exemplo a área da saúde, porque agora podemos, e bem, na sua opinião, optar pela unidade hospitalar. Esqueceu-se é que podemos optar mas dentro da rede pública. Até posso ter a Cuf à esquina, se lá vou, pago. Nunca tinha assistido a tanta desonestidade de um opinioneiro.

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    6. Me, aí está uma área em que é preciso mais e boa oferta, e subsidiada ou fornecida pelo Estado: o pré-escolar. Não faz sentido estar a financiar privados onde há oferta pública, e entretanto não haver creches e infantários que garantam, a quem não pode pagar, ou só pode pagar parte, onde deixar os miúdos.

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    7. sim, há um certo paralelismo com a questão da saúde. o ideal era que o privado fosse uma opção com conforto para quem o quer pagar (como quartos privativos) enquanto que neste momento é a única opção em algumas especialidades (oftalmologia, medicina dentária..)

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  3. Em nome da democracia e dos direitos constitucionais dos cidadões, como dizia o Aníbal, eu quero tudo igualinho. (Há lá coisa mais bonita que a igualdade?)

    (E não podias aí ver no livrito se não há nada sobre o direito à cultura e ao desenvolvimento pessoal e assim? Cof cof... umas viagenzitas...cof...)

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    1. MC, MC... e tens elegibilidade para o cartão de cidadão gold? Se fores silver podes só escolher duas opções. Isso das viagens, só com o platina. Mas há fundamentação, claro que há: direito de deslocação, nomeadamente o de emigração. Claro que depois uma pessoa passa uma semanita e decide desimigrar, e pronto, volta-se. Ando aqui a pensar num pacote completo com voucher TAP (direito de deslocação) + hotel (direito a habitação, latu sensu) + visitas guiadas e entradas em museus (direito à cultura). Que tal?

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  4. Há aí algum artiguinho com o direito à saúde? Eu queria umas pernas com boa circulação sanguínea que não me doesse mas tanto sff. E isso resolvia o assunto da celulite lá também. E já agora, direito a uma lipoaspiracao e hipnose para passar a detestar chocolate, que isto de passar um ano mau traz muitos quilos a mais. Era só, obrigada.

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    1. AEnima, o direito à saúde e bem estar inclui uma semana de SPA semestral, com massagens, drenagens linfáticas, o que quiseres. Arranja-se um voucher e o cidadão opta pelos serviços que melhor o servem, vale?

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    2. Não me parece mal mas só um começo. Uma semana é pouco. Duas vá. :)

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    3. Ui, que exigentes que estamos!

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  5. Totalmente de acordo. Eu andei numa dessas escolas de associação no secundário e garanto que havia seleção. Eu e os meus pais fomos a entrevista e tive de levar as minhas notas do período anterior. A grande maioria dos alunos nem sequer eram da freguesia, mas sim de cidades próximas onde havia oferta de escola pública. A escola pretendia os melhores alunos, mesmo que isso implicasse ir busca-los a quilómetros de distância (ia um autocarro de manhã buscar-nos a casa). Como tal, o argumento da proximidade geográfica é ridículo e desonesto. Aquilo é um negócio. E agora vejo estes paizinhos muito indignados, mas ninguém se indignou quando os currículos foram alterados e se tornaram impossíveis ou quando milhares de professores foram para o desemprego em 2012.
    Também não compro o argumento da liberdade de escolha, porque se assim fosse tínhamos de financiar também as escolas verdadeiramente privadas e os pais que estão em ensino doméstico.
    Se conseguirem de facto acabar com o lobby dos contratos de associação já considero que o meu voto no PS não foi completamente em vão. :)

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    1. Aí é que bate o ponto: a escola pública é um espaço de inclusão, não pode recusar ninguém. Quando ouvi uma mãe a queixar-se que a culpa era do Estado, que fez demasiadas escolas que agora estavam às moscas, pensei logo nas ditas moscas. São os alunos que ninguém no privado quer. Mesmo no privado sem contratos de associação, em muitos colégios os alunos problemáticos são postos de parte. A minha sobrinha teve de prestar provas para entrar, com seis anos! Só por aí já não me tinham como freguesa.
      A verdadeira liberdade de escolha só existe quando há condições económicas da parte de quem escolhe. Quem é pobre ou nao tem recursos, sequer para pagar uma parte de uma mensalidade, não tem liberdade. Mas se o Estado dá o serviço que, aliás, é obrigado constitucionalmente a providenciar, uma pessoa não vai dizer "ah, mas eu queria melhor". Se quer melhor, que se envolva mais e lute pelo serviço público melhor. Isso sim, é que é de valor. E isto é válido para ensino, saúde, seja o que for público.

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