Foram os piores seis anos da minha vida, e acho que alguém me deve uma indemnização qualquer por, no folclore, estar bem assente a ideia de que a faculdade é a melhor época da nossa vida. Não foi a minha, e penso que é seguro afirmar que muita gente concorda. Vim do liceu uma miúda cheia de gosto pela escola e pela aprendizagem, cheia de ideais de que a universidade seria moldada à imagem daquele fresco em que na ágora Aristotles e Platão debatiam, e os alunos bebiam o seu saber. 'Tá bem abelha. Se me pedissem para retratar a minha visão daquele antro de egos, chusma de salazaritos, amontoado de sebentas velhas, onde se privilegiava não o saber mas o empinanço puro e simples, faria uma coisa muito pós-moderna, usando como meio lixo decomposto e que nem serviria para reutilização ou reciclagem. É que não obstante entrada planando em nuvens diáfanas acabei a chafurdar num aterro imundo e pestilento. True story.
Persisti e acabei e curso apenas por teimosia. E despeito. E porque prometi ao meu pai. Acabei quase acabada, sem quaisquer perspectivas (o nepotismo e amiguismo é fortíssimo, naquela instituição, e eu não tinha passe para o caminho das pedras), mas lá me amanhei. Arranjaram-me um Patrono (um clínico geral da advocacia, sem pergaminhos, conhecimentos ou fama) que me pôs a trabalhar (de borla, claro) comó caraças, e foi então que comecei a perceber para que servia aquela merdunça toda que me obrigaram a enfiar na cabeça. Toda, não: cerca de metade, que o resto do curso serve (servia?) apenas para encher chouriços e dar emprego a medíocres. Fiz de tudo: bater conservatórias, notários, repartições de finanças; ir para o tribunal com uma listinha de processos para consultar e tomar notas e, já agora, recolher guias de pagamento, ou ir para a fila da distribuição com petições novinhas em folha, dar entrada de peças. Assisti a muitas diligências judiciais (acompanhava o meu patrono a todas as que fazia) e fiz os sessenta julgamentos / diligências que o estágio obrigava a assistir. Bastava uma por dia (vinte a crime, vinte a cível, vinte a trabalho), mas muitas das vezes deixava-me ficar a assistir a mais. Porque estava a aprender, finalmente. A absorver tudo. A construir a minha estrutura de profissional, mais do que de licenciada numa porra qualquer. A amanhar peixe para depois o saber cozinhar bem. A perceber, enfim, para que servia o Direito.
E para que serve, hein? Para os outros não sei, para mim serve para resolver problemas. Simplesmente. E se a resolução que a lei aponta é chocante, bizarra, aberrante, é porque não se está a fazer Direito, está-se a aplicar mal a lei parvamente. Não, dura lex não sed lex. A lex não é um fim em sim mesmo, o Direito é um sistema, e é preciso ter mais que a capacidade de ler e decorar os canhenhos e transferir para o caso. É preciso imaginação (quem diria, hein), sentido crítico, duvidar metódica e constantemente, principalmente perante resultados que ferem a mais elementar noção de justiça e adequação, voltar atrás, estudar mais, pensar e, nunca esquecer, ter sempre presente que somos falíveis, facilmente nos atolamos em atavismos que facilitam a vida mas não aliviam a consciência, mas temos a obrigação de fazer o melhor possível porque a lei - o Direito! - serve a sociedade e o cidadão, e não o contrário.
Vinte e cinco anos passados, valeu a pena? Meh. Tenho um trabalho que me paga as contas, me proporciona uma vida confortável, e até me traz algum prazer (em dias muito alternados). Por outro lado, falhei redondamente. Não segui uma "vocação". Não deixei tudo para trás quando percebi que aquilo não me fazia feliz, e não insisti num sonho que (obviamente!) seria alcansável, para tanto bastaria que eu acreditasse mesmo e me esforçasse o suficiente. Verdade seja dita: a minha vida não se assemelha, minimamente, à vida que um dia sonhei para mim (and there's nothing wrong with that). E pronto, para os vendedores de banha da cobra do self-help, coaching e tretas do género, falhei redonda e retumbantemente. Para uma pessimista como eu - sendo que a minha definição preferida de pessimista é a de um optimista bem informado - acho que até me safei muito razoavelmente. Sou independente e não peso a ninguém. Tenho uma vida melhor que a de muitos. Esforcei e continuo a esforçar-me, mas tenho noção de que também tive muita sorte. O que de melhor tenho na vida não aconteceu apenas em virtude de qualquer esforço ou mérito, mas muito porque calhou. Tal como as coisas más não serviram para me castigar: simplesmente calhou acontecerem. Padeço muito de overthinking, self-doubting e sou uma poster girl do síndrome de impostor; continuo a batalhar com a ansiedade e depressão, não me alimento saudavelmente, fumo, não cuido de mim como devia, canso-me com facilidade, cedo mais do que gostava ao ennui. Ou seja, não tenho nada a ensinar a ninguém sobre a inefável arte de viver. Nem quero, credo. A minha ted talk seria não só uma das mais curtas como deprimentes de sempre, e terminaria com um "isto é mesmo assim, geralmente calha cocó, e um gajo tem é de saber lidar, muita forcinha".
Mas cá estamos. Lidando (uns dias mais, outros menos) e botando (muita, chata, interminável) faladura.
Muita forcinha, hein? Hein.