sábado, 14 de janeiro de 2017

Revirar d'olhos da semana

E este foi logo a fechar, com as reacções à notícia que o rapaz agredido pelos ricos filhinhos do embaixador do Iraque tinha chegado a um acordo com esta gente e ia receber uma indemnização. Nas várias notícias online diversas pessoas, decerto encharcadas de elevadíssimos sentimentos de honorabilidade, vociferavam com o rapaz e respectiva família. Interesseiros era o mais simpático que lhes chamavam.

Ora vamos lá trocar isto por miúdos. O rapaz levou uma valente tareia que o atirou para o hospital em estado lastimoso. Várias fracturas, uns tempinhos em coma, enfim, e por baixo, podemos concordar que aquilo doeu e moeu. Os perpetradores beneficiam de um regime de imunidade diplomática, ou seja, para responderem em tribunal pelo crime praticado - ofensa à integridade física agravada, crime público que não depende de queixa do ofendido - depende-se da boa vontade do Estado iraquiano, para a levantar. Que foi pedida, mas podemos esperar sentados, e num sítio abrigado. Segundo a lei portuguesa, qualquer vítima de crime pode deduzir pedido de indemnização civil, com vista ao ressarcimento dos danos patrimoniais e não patrimoniais (dores, sofrimento, etc) sofridos.
Tal pedido de indemnização tem de, obrigatoriamente, ser deduzido no processo crime. Ora como já se viu, o processo crime não vai ter seguimento (de certezinha, nunca acerto no euromilhões mas nisto apostava em segurança), porque não vai ser levantada a imunidade, e não porque a justiça é uma porcaria e tal (como defendiam tantos comentadores online, ai, a ignorância é um bem tão equitativamente distribuído).
Seria então seria admissível deduzirem pedido de indemnização nos tribunais cíveis (não me vou por aqui a maçar com artigos e tal, é assim). Agora vamos lá hipotizar como seguiria esse processo cível: citar os réus. Boa sorte e tudo de bom. Ia ser um sarilho que não levaria menos que um ano.
Imagine-se que finalmente eram citados pessoalmente (yeah, right) ou, não sendo, eram citados editalmente, sendo representados processualmente pelo Ministério Público. Siga para julgamento, apresentação de prova, sentença, aqui já se ia, na melhor das hipóteses, em ano e meio, dois anos. Imaginemos que a sentença era favorável, e condenava os dois facínoras a pagar uma indemnização boazinha.
E agora? Boa sorte para executar a sentença. Acham que os tipinhos têm património ou rendimento em Portugal, ou sequer num país da UE? Boa anedota, siga. Ou seja, o desgraçado, além da tareia, ia ter um longo calvário na justiça, com os inerentes custos e gasto de tempo, para no final ter uma sentença para emoldurar e plantar na salinha de estar.
Em vez disso, o advogado negociou um acordo, directamente com os fulanecos, ou antes, com o papá, a embaixada, seja quem for. Chegaram a um consenso sobre quantias (que se desconhecem e não temos de conhecer, mal fora).
Ou seja, trocou o calvário acima descrito e riscos necessários por um dinheiro certo, que ao menos o compense das dores, humilhação, sofrimento. O que há de errado nisto? Nadinha. Zero. Tomara que toda a gente que é vítima de um crime, acidente, ou qualquer outra situação causada culposa ou dolosamente por alguém ter esta conclusão.
O processo crime seguirá, obviamente, visto que o ofendido não pode desistir da queixa. Vai esbarrar contra uma parede de betão, muito provavelmente; mas ao menos o rapaz não fica com as dores e ainda a frustração de ter sido todo amachucado sem qualquer compensação.
E pronto.
Mas para a populaça isto não chega, diz que se vendeu, e a honra onde fica, que não há dinheiro que pague. Tá bem, abelha. O dinheiro não paga, mas é o único "castigo" que aqueles meliantes vão ter. E ao menos a vítima não fica totalmente desprotegida, sendo que, como já expliquei, muito dificilmente obteria reparação pela via judicial (e, mais uma vez, não, não é porque a justiça é uma porcaria, é porque as leis e a vida são como são).
Tudo visto, esta é a melhor solução possível, e eu fico sinceramente satisfeita pelo rapaz. Ainda bem que obteve alguma reparação. Quem dera que sucedesse o mesmo com todos os que passam por agruras semelhantes.
E o povo ululante? Que s'a fodam, com toda a franqueza. E nunca se vejam numa situação parecida, que aí quero ver-vos, mais à vossa honra, justiça e o caracinhas.

12 comentários:

  1. Mas ser ignorante está in!

    Sem dúvida, o acordo trará muito mais benefícios ao jovem do que a sentença, bastava verem isso.

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    1. Neste caso, isso é claro. Se eu gostava de ver os dois delinquentes a responder em tribunal? Claro, e aposto que a vítima também, mas sejamos realistas. Afinal o moço foi parar ao hospital todo partidinho, esteve ali vai não vai, o dinheiro não paga mas dá algum consolo.

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  2. 1000% de acordo!

    Fartinha de ver gente que fazia isto e aquilo e aqueloutro, de ver colunas vertebrais tão direitas, de tantas certezas e tantos heróis. É tão fácil criticar e tomar atitudes, quando se trata da vida dos outros e das opções do outros.

    Estou contigo, descomunal revirar de olhos ;)

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    1. Mac, quando vi uma notícia com tantos comentários, na minha ingenuidade pensei que fosse gente a congratular-se por a vítima obter alguma compensação. Quando vi o vómito que para ali ia fiquei sinceramente indisposta. Caramba. E se tivesse siso atropelado, num acidente, pelos mesmos dois meliantes? Não merecia uma compensação?
      As pessoas conseguem ser muito poucochinhas.

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  3. Epá, gosto tanto de ti :) , foi tal qual o que pensei (e escrevi, mas não tão bem explicadinho como tu). Somos um país de hipócritas, "ah e tal ganhaste dinheiro? És um vendido". Enfim, é passar de bestial e besta num instantinho.

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    1. Patrícia, tivemos a mesma reacção, ena! Me likes u 2 ;)
      Qual é o mal, com franqueza? Como já disse, e se fosse um atropelamento e fuga? Também haveria responsabilidade criminal, mas já não chocaria um indemnização? As pessoas são mesquinhas, é o que é. Até cheguei a ler comentários de gente a dizer que assim também queriam levar uma tareia. A sério que queriam? Daquele calibre. Ora bolas.

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    1. Pois não. Nem paga o tempo que ele perdeu, numa cama de hospital. Nem compensa as dores, o trauma, o sofrimento físico e psíquico.

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  5. também estou completamente de acordo contigo e gostaria de ter coragem e se calhar pachorra para esfregar na cara de alguns (a quem nem o bom senso natural nem as ligações ao Direito servem...) a tua última frase. mas talvez não valha a pena, mesmo.
    (não estou certa de que alguns pensem em honra e tal; acredito mais no olho por olho :()

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    1. Sim, se dependesse de muitos, a coisa só se resolvia amarrando os agressores ao pelourinho e com chicotada até à morte. As 'ssoas são maravilhosas. E a indemnização (segundo as últimas notícias) até foi bastante razoável - mais do que obteria na justiça, mas nenhuma fortuna.

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  6. Tal e qual. Sem contar com o facto de que mesmo que fossem cá julgados, condenados e tivessem património para executar caso não pagassem, duvido que o valor da indemnização civil determinada pelo tribunal fosse superior (ou sequer igual), dado o valor das indemnizações praticadas por cá... Sinceramente só ia perder tempo (anos) e dinheiro (taxas de justiça, honorários de advogado, solicitador, despesas com documentos, deslocações, etc). Bem fez ele e os outros que se calem e rezem para que uma coisa destas nunca lhes apareça na vida.

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